Cheiro de café feito na hora

Publicado por Sebastião Verly 18 de junho de 2012

Hoje escrevo sobre um tema muito comum para meus colegas da Superintendência de Limpeza Urbana da Prefeitura de Belo Horizonte, SLU. Outro dia uma nossa colega que se dedica à separação de vegetais para compostagem, contava o caso de um de seus treinamentos de trabalhadores de um “sacolão”, estabelecimento onde passou a ser feita a coleta de restos de frutas, legumes e folhas que são levadas para a o pátio da Central de Tratamento de Resíduos Sólidos, onde são processados para virar fertilizante.

Ela disse que sentiu, vindo do interior do estabelecimento, um cheiro agradável de café feito na hora. Sorridente como ela sempre se apresenta, fez um comentário: “Que cheirinho gostoso de café!”

Imediatamente um dos empregados do sacolão foi até o espremido espaço em que outro colega de sua equipe “passava” o café e trouxe um copo de plástico cheio para minha amiga. O copo estava completamente coberto em todo seu espaço por uma crosta de sujeira. E aí?

Foi então que me lembrei de alguns casos acontecidos em meus trabalhos de mobilização social pela periferia de Belo Horizonte. Certa vez, ingressou na SLU um estagiário de comunicações para fazer fotografias junto conosco. Fomos para a periferia, na região Oeste onde sempre permanecia, e não sei se ainda permanece, aquela cascata de lixo que os moradores jogam no local. Depois de fotografar pelo lado de cima, observei que havia uma casa em construção, lá em baixo, do outro lado do depósito clandestino de lixo.

O vigia da construção nos permitiu entrar, mas, num misto de delicadeza e loucura, impôs uma condição: exigiu que tomássemos o café que ele acabava de coar. Trouxe um copo de plástico bem antigo e com aquela camada de sujeira agarrada e própria de vasilhames do material quando deixados ao léu. O Zé Luiz, fotografo, com calça e camisa de linho, barba bem escanhoada, mostrava não se ajustar àquela situação. Decidi que eu tomaria o café por ele. Quando o Senhor Vicente, o tal vigia, percebeu, foi junto ao canzarrão que o auxiliava na guarda da casa e do chão bem próximo ao animal, recolheu um outro copo idêntico ao primeiro. No retorno à autarquia, o Zé Luiz pediu dispensa do estágio. Com menos de um mês de experiência.

A tarde de anteontem, numa reunião em um CRAS, Centro de Referência de Assistência Social, na Região de Venda Nova, durante o horário do lanche eu tive a infeliz idéia de contar os dois casos. Ah, pra que?! Todos as demais participantes da reunião tinham experiências similares para contar.

Envergonhado de haver começado o assunto, passei a viver um nervosismo que me fez emendar (emenda pior do que o soneto) uma visita em que eu e uma colega fomos fazer a uma auto intitulada líder comunitária no Bairro Casabranca. Ana Paula, minha colega, hoje também gerente de um CRAS na Região Leste, decidiu pedir um copo d’água.

Dona Sandra, a líder da comunidade, foi até junto do seu companheiro que estava bêbado, desacordado no chão e, apanhou o único copo de vidro que existia na casa, um pouco sujo de resto de leite e o enfiou em um pote de barro para recolher a água que ofereceu à colega. Ana Paula me deve esta: eu pedi para beber primeiro, numa aparente falta de cavalheirismo, para que o gosto do leite desaparecesse na segunda vez.

Para quem lida com gente é preciso ter força, é preciso ter fibra para enfrentar o que der e vier. E saber que há também o lado bom. Outro dia falaremos de coisas belas e emocionantes que vivemos especialmente na periferia de BH.

Comentários
  • VLADIMIR RIOMAR 4324 dias atrás

    Meu prezado amigo, suas aventuras pela periferia valem, por si só, um livro. Você não conhece apenas a alma dessa “gente simples” e hospitaleira, também sabe o gosto que tem… Abraços

  • Mavi Lamas 4324 dias atrás

    Sentindo esse cheirinho de café passado na hora e curtindo cada palavra sua, só me resta dizer: saboroso!

  • verly 4324 dias atrás

    Muito obrigado, meu prezado amigo. Fico feliz em ver como v. me trata e sempre lê meus textos.
    Eu admiro sua capacidade de estar em tanto slugares ao mesmo tempo.

  • Marco Antônio Nogueira 4325 dias atrás

    Excelente texto, VERLY.
    Como sempre, é mais
    uma bela e rara
    crônica esta sua.

  • Regina Maria 4325 dias atrás

    Tem coisa melhor do que o cheiro de café, aquele cheirinho gostoso que invade o quarto quando a gente está acordando?

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