O Papa Francisco e o clericalismo
Padre João Delço Mesquita Penna
Sacerdote Diocesano
“quem quiser ser grande deve tornar-se mais servidor, quem quiser ser o primeiro deverá tornar-se o melhor servo. Pois o Filho do Homem não veio para ser servido, Ele veio para servir e para dar sua vida como resgate em favor de todos os homens” (Mateus, 20,25-28).
Segundo o Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, a palavra “clero” é referente à classe sacerdotal em algumas Igrejas. A sua origem “klêros” vem do grego e na Igreja Católica diz respeito ao conjunto de ministros ordenados, que forma o presbitério de uma determinada Diocese, composta de padres, bispos e diáconos.
Em inglês, a palavra “padre” – “priest” – substituto de clérigo, é derivada do grego “presbyteros”, que significa “ancião”, e é usado em todo o Velho e Novo Testamento para identificar um indivíduo que oferece sacrifício a Deus.
Para designar presbíteros, o termo clérigo foi generalizado no século III, fazendo surgir a categoria, chamada de clérigos, com funções distintas e superiores aos leigos. Assim, a Igreja ficou dividida entre: o “clero” formado, os clérigos, que monopolizava a capacidade de tomar decisões, com poder de administrar os rituais sagrados, e os Leigos compreendendo todo o “povo de Deus” batizado, participantes de uma comunidade de fé no âmbito de uma paróquia.
Por clericalismo, de acordo com o mesmo dicionário, entende-se a abusiva intervenção do clero na vida da Igreja, ou seja, o clericalismo é a conduta corporativa que o clero de uma determinada religião, em especifico neste artigo a religião católica, empreende para favorecer seus interesses institucionais e materiais com o objetivo de assegurar seus privilégios.
Na Europa da Idade Média, o Clero representava a camada relacionada com o sagrado, ou seja, aqueles que rezavam e fortaleciam a religião católica, representada por papas, bispos, cardeais, monges, abades e padres. Portanto era a classe detentora do poder da Igreja, a mais poderosa instituição de então, que tinha seus privilégios e prestígio na sociedade feudal, porque se impunham como os únicos capazes de fazer a ligação entre Deus e os Homens.
O clericalismo moderno renasceu na Itália, quando o Papa Pio IX, promulgou em 1864 a encíclica Syllabus Errarus, Atribuições Erradas, considerando-se um prisioneiro do Estado italiano, recém-nascido em 1861. Condenou todos os aspectos do Liberalismo e do Modernismo, dando vida aos movimentos do catolicismo resistente em reconhecer o novo Reino da Itália.
Durante séculos, o clericalismo dominou os assuntos externos de caráter “temporal” na Igreja. Na década de 1960, o Concilio Vaticano II, significou uma reviravolta na relação dos padres e bispos com os leigos, através de sua “volta às fontes”, nos fundamentos bíblicos e na filosofia patrística, que associava a fé com a razão. O Vaticano II resgatou o modelo de Igreja das comunidades cristãs primitivas, onde, em seu seio, a exemplo do que Jesus queria, existia um único gênero de cristãos, os Batizados.
As Conferências Episcopais latino-americanas, Medellín (1968), Puebla (1979) e Santo Domingo (1992), reafirmaram o modelo de Igreja proposto pelo Vaticano II. A V Conferência Geral do Episcopado Latino-americano e do Caribe, chamada Conferência de Aparecida, realizada em Aparecida-SP em 2007 denunciou a volta do clericalismo que concebia a Igreja, composta de “duas categorias” de cristãos: o clero, o polo ativo, em quem reside toda iniciativa e poder de decisão e os leigos, o polo passivo, a quem cabia obedecer às decisões daquele.
Na atual conjuntura da Igreja no Brasil e no Mundo, podemos constatar alguns sinais e sintomas do retorno do clericalismo no seio da igreja de diversas formas, que mencionamos. Quando presenciamos seminaristas ainda muito cedo, em incipiente formação, fazendo uso de vestes litúrgicas clericais, como clerystman, batinas e barretes, para se diferenciarem do povo Leigo. Quando deparamos com alguns escândalos e abusos sexuais e financeiros, praticados por padres e bispos que gastam enormes quantias de dinheiro da paróquia e da diocese consigo mesmos, assim como em construções e redecorações de novas residências paroquiais, templos e capelas luxuosas, onde o povo não tem acesso. Quando presenciamos atitudes como fazer viagens turísticas com pretexto religioso mas eivadas de caprichos luxuriosos, ou até mesmo quando ligamos nossos aparelhos de TVs e redes sociais e nos surpreendemos com homilias e discursos de padres e Bispos desconectados da realidade da vida e do sofrimento humano.
O Concílio Vaticano II confiou à Igreja o mandato de encorajar os fiéis leigos a se envolverem cada vez mais na missão evangelizadora da Igreja, não por delegação da hierarquia, mas na medida em que o seu apostolado é a participação na missão salvadora da Igreja. Neste sentido todos os Batizados, por meio do batismo e da confirmação são chamados a vivenciá-la na radicalidade evangélica.
O Papa Francisco, em sua homilia de 2 de Abril de 2015, falando aos sacerdotes no desempenho de sua missão, diz que o verdadeiro pastor é aquele que, tomando consciência de quem ele é, trás em si o cheiro das ovelhas. Em sua “Carta ao Povo de Deus” de 2018, o Papa condenou os pecados de abuso sexual e de poder na Igreja e fez a ligação destes pecados ao desvio do clericalismo.
Para o Papa Francisco o clericalismo não é mais concebido como algo externo à Igreja como alguma ingerência indevida nas questões temporais dos fiéis, mas essencialmente como algo interno à Igreja, que ameaça distorcer sua natureza missionária sagrada.
Mas o que fazer para reverter o avanço da cultura clericalista na Igreja? Será possível a Igreja acabar com o clericalismo que o Papa Francisco tantas vezes tem denunciado? No evangelho de Mateus encontramos com objetividade e clareza o mandato de Jesus: “Vocês sabem: os governantes das nações têm poder sobre elas, e os grandes têm autoridade sobre os pequenos. Entre vocês não deverá ser assim: “quem quiser ser grande deve tornar-se mais servidor, quem quiser ser o primeiro deverá tornar-se o melhor servo. Pois o Filho do Homem não veio para ser servido, Ele veio para servir e para dar sua vida como resgate em favor de todos os homens” (Mateus, 20,25-28).
Em junho de 2019 a Associação dos Padres Católicos dos EUA, que congrega mais de 1000 padres de 120 dioceses, publicou um documento sobre o clericalismo, onde o define como uma expectativa de privilégios que leva a abusos de poder e desvios, no sentido de fazer parecer que os ministros ordenados devam ser melhores do que qualquer outra pessoa do Povo de Deus e que sua palavra, seu comportamento e alto estilo de vida nunca podem ser questionados.
O teólogo português frei Bento Domingues, em artigo publicado recentemente, afirma que é “necessário desconstruir a eclesiologia que produz e fundamenta o clericalismo. Sem esse trabalho, a concepção de Igreja do Direito Canônico, que vigorou de 1917 até 1983, de Pio X até o Vaticano II, vai ressurgindo sempre, quando menos se espera”.
“O clericalismo, que não é só dos clérigos, é um comportamento que diz respeito a todos nós: o clericalismo é uma perversão da Igreja.” disse o Papa Francisco aos jovens italianos reunidos no Circo Máximo, destacando a necessidade do testemunho e da Igreja Sair de Si Mesma: “onde não há testemunho, não está o Espírito Santo”.
Com certeza o enfrentamento ao clericalismo não será tarefa fácil. Sonhando com uma Igreja aberta aos desafios da humanidade em tempos de mudanças, distante das amarras do clericalismo, Francisco apresenta ao mundo a proposta de nova evangelização, a partir da “Igreja Em Saída”, Evangelii Gaudium, que inspira a possibilidade de um novo agir pastoral e da proximidade entre Povo de Deus e a Igreja hierarquicamente estruturada.
Francisco não para por aí. Para aprofundar esta reflexão apresenta a proposta de uma nova Assembleia Eclesial da América Latina e Caribe com o lema: “Somos todos discípulos missionários em saída”, que será realizada na Cidade do México de 21 a 28 de novembro 2021 e que recordará os 14 anos da 5ª Conferência Geral da Conferência Episcopal Latino-Americana em Aparecida e terá como objetivos, como explica uma nota do Conselho Episcopal Latino-Americano, CELAM, “contemplar a realidade de nossos povos, aprofundar os desafios do continente, reacender o compromisso pastoral e buscar novos caminhos em chave sinodal”.
FONTE DE PESQUISAS: (ADAPTAÇÃO):
Comissão Brasileira Justiça e Paz – Organismo da CNBB – https://justicapaz.org/index.php/63-igreja/1108-clericalismo
Revista Vida Pastoral – https://www.vidapastoral.com.br/
Humanitas – Unisinos – [email protected]
Ameríndia – artigo de Agenor Brigatti – [email protected]
Artigo ‘Igreja – Carisma e Poder’ de Leonardo Boff oferece roteiro para sair do clericalismo – [email protected]
Vatican News https://ww.vaticannews.va/pt/papa/news/2018-08/papa-francisco-igreja-clericalismo-jovens-sinodo.html
Comentários
O autor denuncia uma realidade que se verifica de modo especial na estrutura “paroquial”, mas a “praga” do clericalismo não é dominante nas frentes missionárias nem nas comunidades novas.
Nas Frentes Missionárias, a maior parte da ação evangelizadora está nas mãos de leigos catequistas e agentes de pastoral.
Nas Comunidades Novas, os sacerdotes são orientadores espirituais, mas nem sempre assumem a coordenação, pois as decisões são tomadas por órgãos colegiados com maioria absoluta de leigos não ordenados.
Vale notar que muitas dessas Comunidades tem fiéis leigos como fundadores; por exemplo, em Petrópolis, RJ, a Comunidade Jesus Menino foi fundada por Tonio Tavares de Mello, um professor leigo, e a Comunidade Mater Dolorosa de Jerusalém tem como fundadora Verônica Jordão, professora e psicóloga. Na Europa, exemplo perfeito de não clericalismo é a Comunidade de Taizé.
Comunidades católicas internacionais, como o Chemin Neuf (Caminho Novo), mesmo tendo padres como fundadores, dividem as decisões com conselhos diretores; no caso do Caminho Novo, reúnem cristãos católicos e não católicos, além de se associarem às Irmãs de Sion, aos beneditinos da Holanda, à Companhia de Jesus (instituto de Origem do fundador) e aos Foyers de Charité.
Esta última comunidade, os Foyers de Charité, espalhada por 40 países (e a pioneira delas, nascida em 1936), tem como fundadora uma mulher leiga, Marthe Robin. Cada um de seus núcleos tem um sacerdote como “pai”, mas a coordenação fica em mãos de um fiel leigo.
Por tudo isso, não se deve colar o rótulo de “clericalismo” na Igreja em geral. Aliás, o mesmo clericalismo tem sido usado como argumento para propor uma igreja não ministerial, organizada democraticamente, sem ministros ordenados. Este grave erro não leva em conta que, se o fiel batizado tem seu “caráter” batismal, existe outro sacramento – a Ordem – que marca com o “caráter” sacerdotal os ministros dotados de funções específicas.
Desde o Papa Pio XII, passando por João XXIII, Paulo VI e João Paulo II – culminando com a Exortação Apostólica “Christifideles Laici” [1988] – o magistério da Igreja valoriza intensamente a presença do leigo na vida da Igreja e do mundo, mas sem cometer nenhuma ofensa ao múnus essencial dos ministros ordenados.
Antônio Carlos Santini