Carta aberta ao companheiro Paulinho Vanucchi

Publicado por Milton 11 de janeiro de 2010

Paulinho, te escrevo esta como ex-companheiro de cela no DOPS de São Paulo e do Presídio Tiradentes, e também como companheiro de militância no Partido dos Trabalhadores.

Passamos juntos por momentos dramáticos de saber que companheiros estavam sendo mortos na tortura, e que outros que estavam presos seriam executados, e que a “grande mídia” iria noticiar mais uma “tentativa de fuga” ou um “tiroteio na resistência à prisão” para justificar aquelas mortes. Vivíamos momentos dramáticos quando, depois de passada a fase inicial de tortura, comum a todos nós, já numa situação mais relaxada no presídio, onde tínhamos acesso a jornais e rádio, o carcereiro simplesmente chegava na porta da cela, gritava o nosso nome e tínhamos cinco minutos para juntar numa sacola nossas poucas roupas pois uma escolta nos aguardava na portaria do presídio, e simplesmente não sabíamos para onde iam nos levar. Também vivemos aquela época de ouvir os gritos de companheiros nas salas de tortura no 3º andar da OBAN até que os gritos cessavam e concluíamos que aquele companheiro fora libertado de seu corpo e não mais seria supliciado.

Tudo isso nos marcou a memória e nos temperou o espírito. Hoje nossos filhos, sobrinhos, até netos, bem como seus amigos e colegas, ao tomar conhecimento destas histórias passam a nos tratar de uma forma dupla e confusa, ora como vítimas indefesas, ora como heróis de uma resistência popular e democrática. Nessa situação eu sempre procurei desmistificar essa dupla e incoerente imagem, e o faço sempre que posso junto às pessoas que não viveram aquele período. Nós não éramos vítimas inocentes que foram apanhadas aleatoriamente nas ruas, éramos militantes conscientes, e pretendíamos fazer uma revolução derrotando as forças que estavam no governo, os militares, a super exploração do capital e o imperialismo arrogante que nos tratava como seu quintal. Tínhamos consciência que havíamos assumido uma postura de confronto, e que estávamos sujeitos a passar por torturas, prisões, a sermos assassinados e a ver nossos companheiros também passando por este massacre nas prisões. Portanto, vítimas inocentes não éramos.

Nem tampouco heróis. Éramos jovens que, ao vermos a cidadania do povo castrada, as injustiças sociais, as arbitrariedades de quem manipulava o aparelho repressivo do estado, usando-o inclusive em causa própria, e por não aceitarmos que nosso país fosse colocado numa posição subalterna por potências internacionais, não vimos outro caminho senão aquele. Fomos levados à luta pelas circunstâncias de um processo de radicalização, mais que pela índole pessoal. A parte da juventude de nossa época que não se engajou nesta luta acabou indo se refugiar nas drogas, ou simplesmente caiu em depressão e foi incapaz de qualquer projeto de vida, fora a outra parte que “entrou para o sistema”, vendeu suas almas e arrastou suas existências tentando sobreviver com uns trocados aqui e outros ali. No extremo, outros, tornaram-se colaboradores do regime e foram arrumar emprego fácil, como os de dedo-duro e bate-pau, pois não encontraram melhores opções de sobrevivência. São essas figuras extremamente medíocres que muitos defendem que sejam julgadas porque mataram, porque assassinaram, porque torturaram, porque estupraram. São, no entanto, Paulinho, apenas a ponta do iceberg. Você há de concordar que são os culpados menos conscientes de tudo o que ocorria naquele momento em nosso país. Os que insistem em punir os bate-paus não estão deixando de fora aqueles que davam as ordens, que planejavam, apesar de nunca terem entrado numa câmara de tortura? E aqueles que legislavam, os que ficavam na imprensa dando cobertura? E aqueles que foram signatários do AI-5, plenamente conscientes de todas as suas conseqüências, como é o caso do Delfim Neto, que fala para todos que é amigo do Lula? Ou do Jarbas Passarinho que escreve nos jornais ironizando o que considera revanchismo contra os militares, simplesmente porque eles venceram a guerra, e que nós, recalcados, teimamos em não admitir a derrota? Você não percebe que eles criam uma cortina de fumaça para se protegerem? Você não acha que estes pequenos bate-paus acabaram virando bois de piranha?

Companheiro, você faz um bom trabalho à frente da Secretaria de Direitos Humanos, mas não deveria sair antes de jogar uma luz sobre os desaparecidos, permitindo que suas famílias saibam onde estão seus corpos, ou em que circunstâncias eles desapareceram, até mesmo se foram jogados no mar e aonde. Tenho certeza que o ministro Nelson Jobim e os comandantes militares podem colaborar para te dar acesso a estas informações. Mas para isso é preciso que você ajude a sociedade brasileira a entender que o importante é que tais fatos não mais ocorram. Para isso precisamos ter a grandeza da visão histórica. Punir torturadores neste momento não resolve nada, o que precisamos hoje é de resgatar a memória no contexto histórico, e se alguém tiver que ser punido são aqueles que hoje estão aí impunes e buscando a glória de terem saído vencedores de uma guerra, na qual o que faziam de fato era entregar o país para as potências estrangeiras, castrando a cidadania, a cultura e a auto-confiança do povo brasileiro. Pois bem, se eles nos derrotaram pelas armas de sua ditadura sustentada por seus patrões estrangeiros, nós os derrotamos pelo voto popular democrático, e estamos através do presidente Lula ajudando o povo brasileiro a encontrar seu lugar na história, sua cidadania, sua auto-estima. Creio que o ministro Jobim e os atuais comandantes militares também fazem parte desta conquista, e queria terminar dizendo que você, que acompanha o presidente Lula há tanto tempo, não deve sair do governo agora. Você ainda tem a importante missão de trazer as informações sobre os desaparecidos, para os familiares e pelo legado que representam para nosso povo e para a humanidade.

Quanto aos que foram responsáveis conscientes pela implantação da ditadura, a condenação será pelo esclarecimento dos fatos históricos. No entanto temos que saber escapar das armadilhas das cortinas de fumaça que eles criam, nos lançando contra os bate-paus que são meros bois de piranha, como o touro raivoso, que investe com toda sua força contra o pano por não conseguir enxergar o toureiro.

Comentários
  • Henrique – Sete Lagoas 4871 dias atrás

    Com o novo governo Dilma Russef tem inicio uma nova fase desta questão dificil que é a dos desaparecidos políticos. Quem de nós não teve um parente ou conhecido que passou por essa situação? Eu mesmo conheço uma familia que sofre muito por não ter idéia do paradeiro de um dos seus.
    Espero que a ministra-secretária de Direitos Humanos da presidência, Maria do Socorro tenha a lucidez para resolver de vez a situação dos desaparecidos políticos.
    Não se trata agora de revirar o passado para despertar o ódio adormecido. Trata-se sim de ATENDER ÁS FAMILIAS DOS DESAPARECIDOS. SE ELES NÃO PUDERAM ENTERRAR O CORPO TÊM DIREITO A CONHECER A HISTÓRIA DOS ÚLTIMOS MOMENTOS DA VIDA DOS SEUS, NÃO PARA DESPERTAR ÓDIO, MAS PARA RECUPERAR SUA MEMÓRIA. CONCORDO COM OS MILITARES QUE ESSE ASSUNTO TEM QUE SER TRATADO DO PONTO DE VISTA DA HISTÓRIA E NÃO DA POLÍTICA PARTIDÁRIA E ELEITORAL. MAS É IMPORTANTE JOGAR LUZ SOBRE ELES PARA QUE MOMENTOS COMO AQUELES NÃO VOLTEM A SE REPETIR EM NOSSA HISTÓRIA. E É PRECISO QUE OS MILITARES ENTENDAM QUE SE AS FORÇAS ARMADAS NÃO TIVEREM A HUMILDADE DE RECONHECER QUE HOUVE ABUSOS ELAS NÃO RECONQUISTARÃO A CONFIANÇA DA NAÇÃO E DO POVO BRASILEIRO.

  • Carlos Foscolo 4882 dias atrás

    Caro Milton,
    Estamos tomando a liberdade de citar parte de sua carta em nosso espaço semanal, dentro da Coluna Júlio Porto desta semana. Como não foi possível reproduzi-la por inteiro, fizemos a recomendação a nossos leitores que acessassem o site da Metro para lê-la inteiramente.
    Um abraço,
    Carlos Foscolo

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