Frestas de solidariedade – parte III Zoraide e Beatriz, amor incondicional

Publicado por Denise Paiva 18 de outubro de 2012

Na véspera do julgamento na Auditoria da Quarta Região Militar, fui procurada por um advogado chamado Afonso Cruz, que vinha de Belo Horizonte e defendia alguns presos políticos. Ele me pediu que hospedasse Zoraide e sua filha de 1 ano e meio, uma linda menina, de cabelos cacheados cor de mel chamada Beatriz. Lá em casa, no sofá, já estavam Isa e Humberto, foi uma confusão. Coloquei o Humberto num colchão no chão da sala e no sofá de casal dormiram Isa, Zoraide e sua filhinha, por sinal muito manhosa.

Zoraide vinha de Santo André, no hiperindustrializado ABC paulista, era operária de fábrica e, segundo seu advogado, o Afonso, vinha ao julgamento só para cumprir uma formalidade, pois já tinha cumprido pena em excesso na Operação Bandeirante, OBAN, uma similar da Gestapo nazista em São Paulo, e não havia a menor possibilidade de ela ter que cumprir mais pena.

Qual não foi a surpresa e indignação, ao final do julgamento, quando Zoraide é condenada a mais seis meses. Ela não poderia ir para o Presídio de Linhares, pois não havia dependências femininas e, como não tinha curso superior, pela lei brasileira não teria direito a prisão especial, como tiveram as “meninas do Serviço Social”, Marilda, Rosangela e Mariléa que cumpriram penas no Instituto João Emilio, na Casa da Providência e no Colégio Santa Catarina instituições tradicionais de caridade e ensino em Juiz de Fora.

Zoraide foi para um quartel de presos comuns em Santa Terezinha, até que a Justiça Militar decidisse transferi-la para uma penitenciária feminina de presos políticos. Bia ficou comigo. Eu não tinha a menor experiência em cuidar de criança, e a menina chorava sem parar. Geninho embalava, sacudia, acalentávamos e ela gritava: Mamãe! Ela dormia de cansaço, de tanto chorar. Foi um desespero!

Bia era por demais inteligente e falou muito cedo, devia ser uma resiliente. Foram alguns dias de sufoco, eu não conseguia sequer trabalhar, com Bia chorando dia e noite. Decidi levar a menina para ver a mãe no quartel. Foi muita brutalidade, elas se viram por entre as grades e Zoraide nem sequer pode pegar Bia no colo. Ali mesmo tomei uma decisão, e fui direto, com a menina, procurar o Juiz Dr. Mauro Seixas Teles.

Por um desses golpes de sorte do destino, o Dr. Mauro tinha uma relação de trabalho comigo. Ele dirigia as Obras Sociais da Igreja Nossa Senhora da Gloria. Eu, como assistente social, junto com Badinha e Cristina, cuidávamos dos pareceres técnicos para definir as subvenções sociais da Prefeitura que eram decididas pelo Conselho do Trabalho e Bem-Estar Social. Antes dos pareceres, a gente visitava os projetos, conversava com os dirigentes, fazia enfim o trabalho típico de assistente social. E eu tinha dado o parecer favorável à obra que Dr. Mauro dirigia e que resultou numa destinação de verba importante.

Quando lhe expliquei o drama de Zoraide e Bia, ele ficou comovido e a Bia foi decisiva. Ela não chorou e disse numa linguagem infantil: O soldado prendeu minha mãe! O lado humano daquele juiz saltou aos meus olhos e eu tive coragem de lhe propor que proporcionasse uma prisão especial para Zoraide numa creche, na Av. dos Andradas. A creche era administrada pelas Irmãs Vicentinas. Também em função do trabalho do Conselho, eu tinha ótimas relações com a Creche, que também tinha recebido subvenção da Prefeitura devido ao parecer técnico de assistentes sociais e não à influencia do clientelismo político, que, com Itamar Franco, conseguimos sepultar. A creche era um exemplo de carinho, limpeza, um ambiente melhor adequado para Zoraide cumprir sua pena: Bia teria contato com outras crianças e Zoraide poderia ajudar as irmãs a cuidar também de outras crianças.

Dr. Mauro achou a solução perfeita, mas me confessou suas limitações para tomar esta decisão sem um respaldo maior, e sugeriu que fossemos juntos e levássemos a menina Bia até o Arcebispo Dom Geraldo Maria de Morais Penido, que residia no Palácio Episcopal na elegante Av. Rio Branco. Dr. Mauro pegou seu carro, era um fusca, e lá fomos até o arcebispo. Bia se portava com elegância, agarradinha no meu colo.

O Juiz contou toda a história para Dom Geraldo e pediu que ele pedisse a prisão especial para Zoraide em nome da caridade cristã, e assim ele poderia deferir o pleito, com maior respaldo para evitar complicações junto à Promotoria e coisas afins da Justiça Militar. Por essas forças da comunidade do destino, Dom Geraldo Maria de Morais Penido era Conselheiro do Conselho Municipal do Trabalho e Bem-Estar Social e com ele eu tinha também uma relação de trabalho que facilitou o entendimento.

Nem sequer acabamos de tomar um café, e Dom Geraldo disse vamos já, nós três e a garotinha, todos juntos, visitar as vicentinas da Casa Maternal Maria Helena. Imaginem a surpresa das irmãs, com visitantes tão ilustres. Primeiro uma conversa de cerca Lourenço conduzida pelo Bispo.

….”Vocês conhecem bem a história de São Vicente, ele não discriminava ninguém… e vocês seguidoras dele também não podem discriminar… Todos sabem que vocês aqui recebem filhos até de mulheres “da vida”, e com certeza vão acolher uma presa política, que não roubou, não matou, mas lutou pela liberdade…”

De repente, para minha surpresa, Dom Geraldo se inflamou e fez um discurso afinado com a esquerda para convencer as irmãs a receberem Zoraide, que aceitaram sem nenhum contra-argumento a nova missão. Imediatamente, Zoraide foi transferida para a Casa Maternal Maria Helena e lá ficou por seis meses.

Logo depois, entra em cena uma grande figura humana chamada Ademar, que vinha sempre de São Paulo. Ele deu muito apoio, carinho e estimulo a Zoraide e ganhou o respeito e a amizade de todos nós. “Sem saber que era impossível foi lá e fez”. Todas as vezes em que me vi diante do desafio de quebrar regras e paradigmas, inclusive aqueles tidos com “leis”, eu me lembrava de que, sob a égide do sentido da moral é que devemos conduzir nossos atos e sempre levei esta experiência para toda a vida: eu, o juiz e o bispo, sob o sol da minha cidade natal, conduzidos e comovidos pela inocência de  Bia, fomos quebrando paradigmas.

A lição da pequena Bia é uma lição de amor, de humanidade e, sobretudo, de fé. Em alguns momentos, por determinados estímulos, o lado bom e luminoso que existe em todo ser humano fulgura e atua.

Comentários
  • rouberdario diniz valerio 4360 dias atrás

    Também tive oportunidade de conhecer a grande figura humana do dr. Mauro Seixas Teles. Fui preso político em Juiz de Fora à época. só uma coisa não bate: No presidio de Linhares tinha uma ala feminina quando fomos transferidos de Belo Horizonte para lá.

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