No acelerado processo de des-sacralização do homem e do mundo, também o tempo sofre as conseqüências. O Domingo se torna um “dia de feira”, como qualquer outro dia. A supressão do ritmo da Criação faz do homem um simples escravo. Dente da engrenagem produtiva, onde o lucro é o único valor. Ou será que, na prática, teremos prejuízos em vez de lucros?
Um sábado para os homens
No mundo da Bíblia, Israel recebeu como mandamento guardar o sábado. Criado à imagem e semelhança de Deus, o homem devia imitar o Criador, que “descansou” no sétimo dia. Fazer um shabbat, hoje sinônimo de “greve” em Israel, significava fazer uma pausa. Uma parada. Não só para descansar, mas para afirmar-se como homem livre, depois da experiência de escravidão no Egito, quando todos os dias eram dia de trabalhar.
O mesmo povo de Israel recebeu o preceito dos anos sabáticos: a cada sete anos, interrompia-se a faina de trabalhar a terra que, assim, podia descansar e se recuperar. A cada 50 anos, 7 x 7 + 1= 50, vivia-se o ano jubilar quando, além da parada geral, até as terras eram devolvidas a seus antigos proprietários, como dom precioso, objeto da promessa de Adonai às doze tribos e a cada família do povo de Deus.
No século XIX, os judeus da Polônia, operários das minas de carvão de proprietários católicos, precisavam trabalhar dezesseis horas por dia para garantir o pão. Mas no sábado, impunham aos patrões o seu shabbat. Lavados da capa negra de carvão, vestidos de branco, compravam um peixe – figura do Leviatã, o monstro das profundezas bíblicas que simboliza o pecado – e celebravam o sábado com as três refeições rituais. E assim mostravam ao mundo que não eram bestas de carga, inteiramente transfigurados em criaturas de Deus.
O Dia do Senhor
Com a ressurreição de Jesus Cristo, os cristãos viram o sábado projetar-se para o Domingo, dia da assembléia dos fiéis. O Domingo tornou-se o Dia do Senhor. Nas palavras de João Paulo II, “O dia do Senhor – como foi definido o Domingo, desde os tempos apostólicos -, mereceu sempre, na história da Igreja, uma consideração privilegiada devido à sua estreita conexão com o próprio núcleo do mistério cristão. O Domingo, de fato, recorda, no ritmo semanal do tempo, o dia da ressurreição de Cristo. É a Páscoa da semana, na qual se celebra a vitória de Cristo sobre o pecado e a morte, o cumprimento nele da primeira criação e o início da ‘nova criação’ (cf. 2Cor 5,17). É o dia da evocação adorante e grata do primeiro dia do mundo e, ao mesmo tempo, da prefiguração, vivida na esperança, do ‘último dia’, quando Cristo vier na glória (cf. At 1,11; 1Ts 4,13-17) e renovar todas as coisas (cf. Ap 21,5)”. (Dies Domini, 1.)
Mas o Domingo é muito mais, diz João Paulo II: é o dia do Cristo ressuscitado, o dia da Igreja que celebra a Páscoa, o dia do homem libertado da engrenagem da produção e disponível para a família; enfim, o “Dia dos Dias”, quando antecipa o grande Dia do Senhor, no fim dos tempos, quando a festa será permanente e o tempo do relógio será catapultado em eternidade.
E se nós parássemos?
No mundo pagão, todos os dias eram iguais. Sob uma mentalidade de exploração do mundo e suas riquezas naturais, trabalhava-se 7 dias por semana, ignorando que, à sua volta, toda a criação tem seu ritmo. Em 28 dias, temos 4 luas, ritmadamente. A cada ano, 4 estações, em ritmo constante. O músico e maestro canadense Murray Schaffer chama a atenção para a harmonia dos ruídos da natureza em sua terra natal: quando o verão traz o zumbido dos insetos e o coaxar das rãs, estão ausentes os sons do inverno, com os uivos dos lobos e os ventos do Ártico. Só o ruído humano é caótico, superpondo usinas e motores, máquinas e veículos, buzinas e sirenes.
Se tivéssemos continuado a observar o shabbat, deixando a terra repousar, não teríamos a poluição.
Nos anos 80, em Volta Redonda, RJ, quando se verificou a primeira greve na história da Companhia Siderúrgica Nacional, após três dias a população contemplava o céu, extasiada, ao ver pela primeira vez que seu céu era azul. Fornos e aciaria parados, a beleza da Criação se fazia visível…
Querem matar o Domingo!
A voracidade do lucro não se resigna a “perder” um dia por semana. O objetivo é fazer uma semana toda de “feiras”: segunda-feira… terça-feira… quarta-feira… quinta-feira… sexta-feira… sétima-feira… oitava-feira!!! A maravilha de comprar e vender, negociar e lucrar todos os dias, a qualquer preço, a qualquer custo humano, social e espiritual.
Na Carta apostólica “Dies Domini”, João Paulo II refletia: “Hoje, porém, mesmo nos países onde as leis sancionam o caráter festivo deste dia, a evolução das condições socioeconômicas acabou por modificar profundamente os comportamentos coletivos e, conseqüentemente, a fisionomia do Domingo. Impôs-se amplamente o costume do ‘fim-de-semana’, entendido como momento semanal de distensão, transcorrido, talvez, longe da morada habitual e caracterizado, com freqüência, pela participação em atividades culturais, políticas e desportivas, cuja realização coincide precisamente com os dias festivos”. (DD, 4.)
Tempo de testemunhar
Em vários países de tradição cristã, crescem as pressões para fazer do domingo um dia sem privilégios para o homem e para a família, negando-lhes o direito ao convívio familiar e à participação eclesial. Se o cristão cede, indiferente, a essa nova (ou velha?) proposta de vida social, torna impossível o ideal de uma vida eucarística, que tem como eixo principal exatamente o Dia do Senhor.
Diante do mundo escravo do lucro e do capital, o cristão dá seu testemunho. “Instituído para amparo da vida cristã, o Domingo adquire naturalmente também um valor de testemunho e anúncio. Dia de oração, de comunhão, de alegria, ele repercute sobre a sociedade, irradiando sobre ela energias de vida e motivos de esperança”. (DD, 84.)
Em muitas nações, os agentes da secularização já impuseram o divórcio e o direito ao aborto legal, a eutanásia e a inseminação artificial. Falta negar ao homem o direito ao repouso festivo, o último refúgio de uma humanidade livre. O Domingo…
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