Naquela sexta-feira, dia que estava marcado para ir para São Thomé, acordei irradiante, animado com a aventura. Antes de ir, porém eu tinha um outro compromisso. Havia marcado para fazer uma tatuagem, com meu primo. Escolhi um símbolo celta, uma cruz chamada triskel, símbolo muito forte utilizado nos rituais de magia que trazia o significado dos três estágios da vida, do ciclo da evolução e de proteção. Essa primeira decisão de ir me tatuar já era o meu primeiro ato de liberdade, simplesmente decidi que não trabalharia aquele dia e não avisaria ninguém. Nem avisaria ninguém que estava indo me tatuar. Afinal, para que as pessoas precisavam saber? Era uma decisão minha, não importa. Me lembro ainda como Natalia falava de minha outra tatuagem, que era “coisa de maluco”. É, realmente eu gostava e me interessava por “coisas de maluco”, já fora até internado, vai ver que era maluco mesmo…
A ideia inicial era que eu me encontrasse com Daniela em São Thomé por volta da hora do almoço, mas avisei a ela que faria a tatuagem e logo que a sessão terminasse pegaria a estrada, que deveria chegar lá no início da noite. Levantei, preparei minha mochila, peguei o carro e fui para o estúdio de tatuagem do meu primo. O processo por lá que eu achei que seria rápido, algumas horas, acabou tomando o dia todo. Mas foi ótimo, conversamos bastante, e a tatuagem ficou muito boa. Mas não ousei confidenciar a ele meus planos, mesmo sendo um primo querido. Afinal de contas, vai que alguém resolve questioná-lo e descobre meu projeto de fuga, e o consegue abortar. Não, melhor não contar a ninguém. Na verdade eu havia comentado apenas com um amigo, um grande amigo, e que eu sabia que não iriam procurá-lo, nem tampouco ele iria me delatar.
Saí de lá por volta de cinco horas da tarde, já agitado, preocupado, querendo cair na estrada. Liguei para Daniela, avisei para ela que estava saindo, que chegaria tarde, ela disse que me esperaria tomando vinhos. Que ótimo, pensei. Aquela garota era realmente apaixonante, um mistério que me seduzia. Iria finalmente encontrá-la, aquela que me parecia ser um anjo, destes decaídos, cheia de luz e sensualidade, poesia e misticismo. Quantas vezes a vida nos dá estas oportunidades? Quantas vezes não nos auto-sabotamos, deixando de viver experiências fantásticas em nome de uma conduta socialmente correta. Mera hipocrisia, pois todos já sentiram essas atrações, mesmo que as tenham reprimido. E o ato de sentir, pensar, idealizar, já é uma traição, já tem um poder sobre si e o outro muito forte. Eu estava apenas me deixando viver, experimentar, me aventurar. Mal sabia o quanto isso incomodaria outras pessoas.
Entrei no carro, passei numa farmácia e peguei a estrada. Finalmente. A tarde caía. Na saída da cidade começou aquele trânsito pesado, típico da hora do rush. Aquele trânsito me deixava ansioso, mas colocava as músicas para tocar e me deixava levar, viajava naqueles sons. Foi então que me ocorreu uma ideia. Se foi erro ou acerto ainda não sei. Mas resolvi mandar uma mensagem para Natalia, avisando que estaria fora naquele final de semana. Não sei se por respeito a tudo que ela demonstrava sentir por mim, não sei se por um auto-sabotamento, enviei uma mensagem simples e direta. Dizia que estava afim de ficar sozinho e iria para uma cachoeira para espairecer. Pronto. O efeito-borboleta foi imediato. Parecia que uma bomba tinha estourado ou que algum acidente fatal tinha ocorrido. Em questão de instantes meu telefone começou a ser bombardeado de ligações, mensagens e tudo mais.
Eu já não era um adolescente que estava fugindo de casa, já estava pra lá dos vinte e cinco, tinha meu emprego, mas nada disso significou nada. Era como se eu tivesse quinze anos, indo viajar escondido com um amigo e alguém descobrisse. Aquela hora eu tive certeza, todos surtaram. Como é frágil o discernimento humano, fiquei abismado. Era evidente como minha família queria me controlar, saber onde eu estava indo, com quem, por quê? Eu havia sido bem sintético e claro na mensagem que enviei, ali estavam todas as informações que todos precisavam não havia mais nada que eu achasse que precisavam saber. O resto era comigo, não lhes dizia respeito, será que podiam ao menos respeitar isso? Não, obviamente que não, e a chuva meteórica de mensagens e ligações inundou meu telefone.
Minha primeira reação foi ignorar. Simplesmente não atendi, não li. Deixei o celular no silencioso, aumentei o volume da música. Assim, segui minha viagem no início. No desdém. Talvez devesse ter permanecido assim, mas aquilo foi me agitando o bombardeio de ligações, foi me tornando inquieto, perturbado. Talvez também tenha havido alguma espécie de sentimento de que deveria responder aquelas pessoas que gostavam de mim, então acabei em um momento atendendo uma ligação. Dirigindo e atendendo.
Era minha mãe. Pelo tom de desespero na sua voz já dava para saber que minha hipótese estava correta e todos haviam surtado. Queria saber para onde eu ia, porque, com quem, o que tinha acontecido. Eu limitei-me a dizer as mesmas palavras que tinha escrito. Não revelei meu paradeiro, pois temia que em algum plano mirabolante resolvessem me resgatar por lá. Imaginei mesmo, um tanto comicamente, eles chegando com a ambulância e os enfermeiros para me buscar em São Thomé. Seria uma cena bizarra. Mas resolvi não revelar nem com quem nem para onde estava indo, disse somente o rumo, o que é um tanto incerto. Ela me perguntou: e a Natalia? Eu disse somente que conversaria com ela quando voltasse, precisava daquele fim de semana para mim.
Atendi também um telefonema da Natalia, ela me dizia para não fazer isso, pois havia muita gente ali que gostava de mim. Eu disse que não se preocupasse, que eu voltaria, que conversaríamos, que precisava daquele fim de semana. Ninguém se convencia muito quando falava comigo, mas acho que viam a impossibilidade de arrancar mais informações, por isso desistiam e me deixavam seguir meu rumo. As mensagens vieram das mais diversas áreas, familiares, amigos, colegas de trabalho. Parece que a informação da minha fuga havia se espalhado como um vírus. Fico imaginando, se nos momentos em que estive deprimido, se recebesse metade daquelas mensagens ficaria mais feliz. Mas não, é quando as pessoas acham que você pirou, quando você se liberta das redes de controle e submissão, é que elas aparecem todas. No momento em que você realmente precisa, na fossa, são poucas que aparecem. Cada mensagem trazia uma especulação sobre para onde eu iria, tão estranhas, que me faziam rir.
Muitas pessoas devem ter pensado e podem pensar que eu estava sendo falso, mentiroso, desconsiderando as pessoas que estavam à minha volta e que me amavam. Na realidade esse amor é um amor falso, porque é um amor que envolve posse. Não é um amor puro. Se fosse puro todas essas pessoas gostariam que eu fosse livre. Mas não foi assim que agiram. Eu estava inconscientemente buscando minha liberdade, procurando uma aventura, uma forma de encontrar um amor livre, sem possessividade, sem amarras. Procurava também me libertar daquele estigma de pessoa doente bipolar que tem que ter seu comportamento supervisionado. Não, não queria isso para mim. Era uma expressão da liberdade, e liberdade é divino.
Apesar de todas as tentativas consegui seguir a viagem sem revelar meu destino, muito menos minha companhia. Mas todas aquelas mensagens e ligação me agitaram bastante, me deixaram nervoso. Eu aliviava esses sentimentos cantando e assim fui até chegar a São Thomé das Letras. Fui chegar lá por volta de meia-noite. Ia finalmente encontrar minha musa, estava em êxtase. Ao abrir a porta do quarto, lá estava ela. O quarto iluminado apenas por várias velas pretas espalhadas, um incenso aceso, e uma garrafa de vinho me esperando. Agora a minha aventura iria finalmente começar.
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