Quaresma, tempo de abrir os olhos

Publicado por Antonio Carlos Santini 23 de fevereiro de 2024
 Gravura de Theodor de Bry que ilustra a edição de 1552  de "Brevíssima relação da destruição das Índias Ocidentais"

Gravura de Theodor de Bry que ilustra a edição de 1552
de “Brevíssima relação da destruição das Índias Ocidentais”

No dia 15 de fevereiro, em San Cristóbal de las Casas, o Papa Francisco recordava o missionário Bartolomeu de las Casas e sua atuação na defesa dos direitos das populações indígenas no Séc. XVI. Autêntico precursor da luta pelos direitos humanos, em uma época do mais extremado tráfico de escravos, Bartolomeu de las Casas, 1484-1568, mostra a presença de homens e mulheres da Igreja ao lado dos mais fracos.

No mesmo local, o Papa Francisco celebrou a memória de Mons. Samuel Ruiz, Bispo da Diocese de Chiapas durante 40 anos, 1959-1999. Com o intervalo de 500 anos, duas vozes da Igreja se ergueram contra a sangrenta maré do capitalismo selvagem para expressar a angústia e as dores dos pequeninos deste mundo.

O pecado mortal da escravidão

Nascido em Sevilha, Espanha, o frade dominicano Bartolomeu de las Casas foi cronista, teólogo e, enfim, Bispo de Chiapas. Seu pai e um tio haviam participado da expedição de Cristóvão Colombo fazendo de Bartolomeu o herdeiro de considerável fortuna.

No Advento de 1511, em Hispaniola – hoje, Santo Domingos – Frei Bartolomeu ouviu o famoso sermão em que o Pe. Antonio Montesinos denunciava os crimes dos senhores de escravos: “A voz que clama no deserto sou eu, e eu vos digo que estais em pecado mortal por causa de vossa crueldade com uma raça inocente”. Daí em diante, Bartolomeu tornou-se ardente defensor dos indígenas americanos.

Após um período junto aos colonos de Cuba, Bartolomeu de las Casas renunciou a sua “encomienda”, território concedido pelo rei para a exploração por concessionários, e começou a luta contra os trabalhos forçados, pela regulamentação do trabalho e pela presença de agricultores espanhóis com suas famílias, para trabalharem as terras em conjunto com os indígenas. Seu projeto incluía a destituição dos administradores de então.

O Bispo de Chiapas

Frei Bartolomeu de Las Casas retratado  pelo pintor mexicano Félix Parra em 1875
Frei Bartolomeu de Las Casas retratado
pelo pintor mexicano Félix Parra em 1875

Após um período na Nicarágua, Bartolomeu de las Casas redige, em 1540, a “Brevíssima Relação da Destruição das Índias”, que Nicolas Senèze define como “violenta descrição dos crimes da colonização”, a ponto de deixar indignado o rei Carlos V. Em consequência, dois anos depois o imperador promulga novas leis que proclamam a liberdade natural dos indígenas, obrigando a libertação dos escravos, ao lado da liberdade de residência e a livre propriedade dos bens, com punição para os atos de violência e agressão contra os autóctones. Simultaneamente, Carlos V abolia o sistema das “encomiendas”.

Depois de ter recusado o rico arcebispado de Cuzco, no Peru, Bartolomeu de las Casas acaba por aceitar o bispado de Chiapas, onde sofreu feroz oposição dos colonos inconformados com a libertação dos indígenas. Ficou célebre o seu debate com o teólogo Juan Ginés de Sepúlveda, na controvérsia sobre os direitos dos povos indígenas. Em 2202, na cidade de Sevilha, foi aberto o processo de beatificação de Frei Bartolomeu de las Casas.

Tantas injustiças

Na recente viagem ao México, na homilia da missa celebrada em 16 de fevereiro, o Papa Francisco refletia sobre as tentações de Cristo:

“Quaresma: tempo para regular os sentidos, de abrir os olhos para tantas injustiças que atentam diretamente contra o sonho e o projeto de Deus. Tempo para desmascarar aquelas três grandes formas de tentação que rompem, fazem em pedaços a imagem que Deus quis plasmar.

As três tentações de Cristo… Três tentações do cristão que procuram arruinar a verdade a que fomos chamados. Três tentações que visam degradar e degradar-nos.

Primeira, a riqueza, apropriando-nos de bens que foram dados para todos, usando-os só para mim ou para ‘os meus’. É conseguir o pão com o suor alheio ou até com a vida alheia. Tal riqueza é pão que sabe a tristeza, amargura e sofrimento. Numa família ou numa sociedade corrupta, este é o pão que se dá a comer aos próprios filhos.

Segunda tentação, a vaidade: a busca de prestígio baseada na desqualificação contínua e constante daqueles que ‘não são ninguém’. A busca exacerbada daqueles cinco minutos de fama que não perdoa a ‘fama’ dos outros. E, ‘alegrando-se com a desgraça alheia’, abre-se caminho à terceira tentação, a pior, a do orgulho, ou seja, colocar-se num plano de superioridade de qualquer tipo, sentindo que não se partilha ‘a vida comum dos mortais’ e rezando todos os dias: ‘Dou-Vos graças, Senhor, porque não me fizestes como eles’.

A figura de Bartolomeu de las Casas se junta à longa procissão dos homens e mulheres da Igreja que se colocaram do lado mais fraco: Madre Teresa de Calcutá, Irmã Dulce, Zilda Arns, Dom Hélder Câmara, Dom Oscar Romero e tantos outros. Eles sabiam, como Madre Teresa, que o pobre era o rosto disfarçado de Cristo…

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