Chifre em cabeça de cavalo

Publicado por Verlim de Oliveira Campos 20 de setembro de 2016

chifre cabeça cavalo
Muitas vezes o que se procura é justificar as expressões populares usadas, de preferência identificando uma região para ambientar culturalmente o costume. Tento localizar provérbios, expressões idiomáticas e manifestações folclóricas dentro de ambientes circunscritos pela minha vida para que a explicação seja aceita.

As ocorrências são pontos de partida para os relatos de experiências que modificaram hábitos e atitudes que se consolidaram. O córrego do Bandeira dava nome à fazenda de meu irmão Alcides e rolava sua pouca aguinha por pouco mais de mil metros, da nascente à deságua, esta no córrego Jataí. O Jataí vinha de duas outras correntes originárias da região de Santa Cruz, ambas com três ou quatro quilômetros de extensão, e partia para maiores distâncias em busca do Ribeirão Marmelada. Apenas descrevo para dizer da falta de importância real do Bandeira, em cuja margem se deu o acontecimento, este sim, de importância porque foi a origem dessa dissertação.

Criamos, a partir de uma tema central, a descrição dos eventos que compõem o lastro de garantia para que possam investigar as procedências e encaminhamentos que esta narrativa e suas possíveis derivações requeiram. Isto ocorreu no ano de 1952, sem precisar os dias do segundo semestre que era tempo de começo de aração da terra para o plantio do algodão. Havia gente trabalhando também na destoca das vargens nas margens do Bandeira, onde cultivávamos o arroz de beira d’água. Minha cunhada estava com a saúde abalada e precisou ser atendida por médicos em Abaeté. Então teve começo esta história.

Meu irmão arreou o alazão em segundos e em um minuto galopava em direção ao ponto mais próximo da rodovia que ligava Abaeté a Morada Nova para conseguir interceptar um automóvel que pudesse conduzi-la até a cidade. Enquanto ele desempenhava sua missão a mulher se aprontou e, com a ajuda da empregada, trocou as roupas dos três filhos que iriam com ela. Numa boa história a realidade confere importância aos nomes que no caso eram Norvina, minha cunhada, Dayse, minha sobrinha e os sobrinhos Teófilo e Alcivander. Nem meia hora e ele encostou um Chevrolet 40 no curral. Já haviam combinado um valor pela corrida e o proprietário mostrava-se atencioso e delicado.

Embora não fosse seu hábito passou-me a responsabilidade com razoável confiança. Além disso recomendou que eu recorresse aos seus cunhados, que moravam próximo, em caso de maior dificuldade. De imediato existiam quatro tios da Norvina que moravam ali numa casinha colada ao curral. Nada perguntei e ele apenas disse:

– Toma conta de tudo até eu voltar.

Mais não disse e nem lhe foi perguntado. No minuto seguinte percebi que estava metido numa camisa de onze varas. Com apenas doze anos e sem a devida preparação tinha que dar ordens com carinho e jeito para conseguir que fossem aceitas e cumpridas. Era um salto pequeno, porém era grande para minhas curtas pernas. O ronco do motor do carro acabou de sumir enquanto entrava o João Jacó, um trabalhador que deixava seus afazeres anunciando:

– Vim ver o que estava acontecendo, mas deparei com o cavalo preso pelo saco a um toco de raiz de aroeira e sangrando demais.

Fomos ver o animal. Deparamos com um quadro de tristeza indescritível. O gemido de dor parecia um sinal de esperança, mas ninguém sabia o que fazer. Falharam as tentativas de estancar a sangria. Engasguei ao pedir que o sangrassem direto no coração para poupar o sofrimento. Os tios presentes e o Gumercindo, outro trabalhador constante da fazenda entreolharam-se e concordaram. Na tentativa de livrar-se do incômodo do suor, o animal rolou no chão. Seu dorso deveria ser lavado, de preferência com água morna, mas diante das ocorrências anteriores não tinha sido possível.

Refeitos do susto e em face da concordância propuseram que o João Jacó se incumbisse da tarefa. Antes de continuar quero dizer que o cavalo era de cor castanho claro, alto, forte, saudável e muito esperto. O preferido de meu irmão era o Guarazim que raramente ficava pastando perto da casa, razão pela qual escapou desta missão. Sorte dele.

Enquanto levava à frente a decisão de desfazer do cavalo, a Dasdor pediu que eu arranjasse alguém para levá-la para a casa de sua mãe, no Mau Cabelo, um patrimônio que ficava a mais de 20 quilômetros. Pequena decisão, de urgência e responsabilidade. Era uma garota de apenas 16 anos, mas de excelente desempenho nas tarefas domésticas. O tio Pedro se prontificou e aceitei que ele a levasse. Creio que esta era a maneira certa de resolver e aprovada até por ela porque ele já a havia levado em outras vezes.

Ouvi falar, sem garantia de certeza, que no Japão se comia carne de cavalo. Consultei o Tio Ari e ouvi dele a confirmação de que havia um abatedouro na região de Perdões ou Santana do Jacaré, no Sul de Minas. Daí a decidir por seu aproveitamento foi um instante mínimo. Tal como procedemos quando matamos uma vaca colocamos as partes da desossa num pau onde pesávamos algodão durante a colheita. Parecia um gol de campo de futebol, em cuja trave havia pregos grandes. Tive que preparar a carne e comer para convencer os que estavam ali de que esta era uma atitude aceitável, não havia contra indicação. No princípio demonstraram estar reticentes e provando devagar, mas depois foram ficando desinibidos e mais animados.

Os demais trabalhadores foram chegando da lida e entrando no clima do banquete. Além de participar do churrasco que foi ganhando corpo todos partiam levando bastante carne, sem questionar ou até ignorando tratar-se de carne de cavalo. O Vicente Leonel se incumbia de atender a todos que apareciam e com maior boa vontade para com os mais íntimos. O Geraldo Pedroso trouxe uma filha e um filho que estavam trabalhando na fazenda do José Vieira, ali do outro lado. Na ida para casa encontraram o Diocésio, irmão mais velho da Norvina, a quem fizeram um relato completo, dentro do que tomaram conhecimento. Até hoje não sei se dei a ele a carne como sendo de vaca ou de boi. Sei que ele também comeu enganado.

Pra evitar especulações joguei no Bandeira os pés, a cabeça e o rabo do cavalo. Corguinho de pouca água, consequentemente de poucos peixes, uns lambarizinhos e algumas piabas pequenas, tivemos que remover uma parte destes descartes para o Jataí no dia seguinte para evitar que atraíssem urubus ao entrarem em estado de decomposição. Esta remoção foi que deu margem a descoberta da procedência da carne pelo Júlio, que divulgou posteriormente e me causou sérias dificuldades. A carne que não foi distribuída naquela tarde e noite permaneceu pendurada no sereno, continuando a ser oferecida também na manhã seguinte para os familiares de pessoas que habitualmente buscavam leite. Após as nove horas da manhã comprei sal e salguei toda a carne restante e coloquei-a pra secar na cerca do curral. E a fartura de carne reinou na cozinha por vários dias.

O Ni e o Dô, ambos irmãos da Vinica, apelido da Norvina, embora morassem em terrenos que faziam divisa com o Bandeira, não foram informados nem agraciados com a oferta de carne. Este foi outro erro cometido, pelo qual fui cobrado por bastante tempo. Um deles disse que o fiz por esperteza para não ser descoberto e o outro, mais condescendente, dizia que eu gostava muito da sua mulher que era muito jovem, de fato era uma bela menina. Seo Iraci, pai da Luzia, mulher do Ni, soube pelo Júlio que eu tinha jogado a cabeça de boi no Jataí e foi lá procurar os chifres. Pretendia construir polvoreiras para caçadores. A polvoreira era feita com a ponta do chifre e servia para levar pólvora durante as caçadas. A parte mais larga era fechada com uma rodinha de cuia de cabaça e a ponta do chifre era por onde saía a pólvora. Muita gente dava gargalhadas perguntando porque o Iraci não conseguiu encontrar chifre na cabeça do cavalo, tenho convicção que esta expressão foi forjada naquele episódio.

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