O ferro que mata

Publicado por Antonio Carlos Santini 10 de novembro de 2015

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O ferro mata. Mas não é só o ferro. Também morremos de ouro e prata, manganês e bauxita, petróleo e carvão. Rasgamos as entranhas da mãe Terra para semear a morte do corpo e a morte da alma.

De todas as atividades econômicas, é a mineração a mais mortal! A mais desumana. No contato com o mineral, o homem vai perdendo pouco a pouco a sua humanidade.

Não me refiro apenas ao passivo ambiental que as mineradoras deixam como herança às regiões exauridas. Não se trata apenas do mercúrio que os garimpeiros injetam nas artérias dos arroios, envenenando as águas e seus viventes. É muito pior…

Vários pensadores e homens de espírito já perceberam os vários “degraus” do trabalho humano e essa espécie de maldição que acompanha os minérios. Os trabalhadores mais abençoados são os profissionais que trabalham com gente. Médicos e enfermeiros, professores e orientadores, por exemplo, situam-se no ápice da escada. Em contato com pessoas, interagem todo o tempo e recebem de volta, em uma espécie de retroação viva, toda a riqueza do reconhecimento e do carinho. Querem um trabalho mais abençoado que o das parteiras?

Um degrau abaixo, vem o trabalho dos criadores de animais, como os pastores nômades. Eles assistem ao espetáculo da vida que se multiplica, as novas crias da estação, os cruzamentos seletivos, a recompensa do leite e da lã. E exatamente por saberem que apenas cuidam da vida, mas não a podem gerar, aprendem a erguer os olhos e dar graças ao Criador.

Descendo mais um degrau, mas ainda felizes, surgem os agricultores. Lavram a terra (apenas o solo!), semeiam e… esperam. O lavrador vive de esperança. Sabe que a chuva e o sol, o vento e as abelhas, todo esse complexo vital que contribui para a colheita, nada depende de sua iniciativa. Ele planta e reza. Planta e… espera. Chegada a colheita, ele pode celebrar. “Os que semeiam entre lágrimas, colherão com alegria.” (Salmo 126,5.)

Resta apenas o último degrau. O mais sombrio. O mais profundo. O mais infeliz. O mundo das sombras e das cavernas, onde dormem seu sono eterno os bolsões de petróleo, as pepitas do ouro, os veios de hematita. Uma permanente desgraça ronda o homem infeliz que desce a essas profundezas em busca da matéria morta a ser transformada em dinheiro.

O operário francês mergulha na mina de carvão e leva consigo um pássaro na gaiola. Se o pássaro morrer, é hora de subir rápido, pois o “grisu” – esse gás ameaçador – já invade os pulmões indefesos. O garimpeiro sul-africano cava o leito do rio sob os olhos faiscantes do capataz. O diamante escondido será sua sentença de morte. O engenheiro da Petrobrás vive turnos de 15 dias na plataforma, em alto mar. Ali, todos os dias são iguais. O ouro negro rouba-lhe a noção do tempo, as diferenças entre dia e noite, a convivência da esposa e dos filhos. É um escravo de luxo.

No garimpo, o ouro corrói os corpos e as almas. Até o ourives, no convívio diário com o metal precioso, vai perdendo as fibras de sua humanidade, regido pela avareza que pesa gramas e miligramas. Sorrisos e abraços, olhares e beijos, tudo perde o seu valor quando o ouro impera: “auri sacra fames”, definiu o poeta Vergílio.

Nos ambientes fechados das mineradoras, a pessoa humana decai tão fundo quanto os poços que ela cava. Nos anos 90, na planta de uma mineradora do Quadrilátero Ferrífero de Minas Gerais, trabalhou um amigo meu, especialista em Recursos Humanos, já falecido. Ele contou-me que o engenheiro-chefe reunia os operários toda noite e projetava vídeos pornográficos. Quem se recusava a assistir, como o meu amigo, era visto como “persona non grata”. Apenas um sintoma da degradação pelo minério.

Uma rápida varredura pelo planeta – desde as minas de carvão da China até as minas de cobre do Chile, dos “diamantes de sangue” de Serra Leoa ao Pico do Itabirito – revela a terrível esteira de destruição causada pelas empresas mineradoras. Quem leu “Como era verde o meu vale”, How green was my valley, de Richard Llewellyn, deve ter chorado um pouco. A recente tragédia de Bento Rodrigues é apenas mais um elo da mesma corrente de morte.

Naquele solo verde, o vaqueiro cuidava de seu gado, a dona de casa plantava couves. Agora, como diria Drummond, no poema de “Lição de Coisas”, apenas o rastro marrom da hematita…

Comentários
  • sonia 3252 dias atrás

    Realmente o ser humano preocupa-se somente em TER:… TER DINHEIRO, POSSES, PATRIMONIO, ETC… e nao SER :.. SER PESSOA, SER GENTE, SER HUMANO DE VERDADE…
    Todos pagamos pela devastação, destruição ou seja pela ganância do homem em retirar tudo da terra sem repor… sem cuidar… cultivar o solo … “Somos responsáveis pelos nossos atos e estamos pagando a conta… mas quem paga são os menos favorecidos como sempre pois os privilegiados, os capitalistas endinheirados que roubam tudo que a mãe terra nos oferece para vivermos em harmonia, esses estão em suas mansões com todas as regalias…. e não vivem onde tudo acontece…. nas áreas menos privilegiadas onde estão as mineradoras, etc…
    lastimável essa situação do homem contemporâneo.

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