A Ticila era tia sim de meus primos e de minhas tias. Era irmã caçula da segunda esposa do meu avô materno. Às vezes a chamávamos também de Ticicila, uma sílaba a mais, mas Ticila foi o nome que ficou.
Em Pompéu, onde nasci e me criei, morávamos na chamada ponta de rua, um local onde as pessoas eram pobres e consideradas gente de segunda ou de terceira. Quando íamos ao centro da cidade, nosso orgulho era uma passagem rápida na casa da solteirona. O pote ali na sala estava sempre com um forrinho de pano bordado, bem limpo e bonitinho. Valia a pena passar ali, ainda que fosse só para matar a sede. O copo de lata feito pelo cunhado dela que era folheiro, estava sempre areadinho.
Só pra não deixar passar em branco, os folheiros, eram aqueles que aproveitavam as latas de embalagens de óleo vegetal e outras, para fazer maravilhosos e coloridos copos ao acrescentarem-lhes uma alça, presa por rebites, naqueles tempos em que nada se desperdiçava.
Inda havia o jardim sempre limpinho, onde a gente podia ver o beijo soltar suas sementinhas, o beijo do norte com grandes flores, as rosas, os jasmins e uma flor muito pequenina, que tinha um sabor levemente azedo.
No mais, era a Ticila: falava da bondade e da pureza. Ela, sem dizer, se mostrava pura. Era a própria certeza. Dona de sua vida. Visitava as irmãs, primas e sobrinhas. Cuidava de uma aqui… de outra ali. Cumprimentava-nos com um sorriso agradável, inocente e brincalhão, mas, acima de tudo autêntico. Conhecia a todos na cidade e deles sabia os nomes e a origem. As portas de sua casa estavam sempre abertas. Seu coração dava abrigo a quem a procurasse. A troco de nada. Mesmo porque ela possuía tudo o que precisava. Dentro de seu coração existia a fonte para tudo de que ela necessitasse. Tinha uma fé inabalável.
No jardim, logo na entrada, havia o velho cajueiro; cajus amarelos muito doces. Vale lembrar também que era costureira e exímia bordadeira. Bordava à mão e à máquina. Estava quase sempre com o bastidor na mão. Enxovais para noivas, para batizados e de primeira comunhão confeccionados com criatividade e bom gosto. E maravilhosos forros de altares, onde técnica e arte se entrelaçavam. Uma mestra nesta atividade. Fazia questão de cumprir seus compromissos, jamais atrasando entregas nos prazos combinados.
Vivia sozinha e jamais se queixava da solidão. Ocupava o tempo da mesma maneira que o espaço do seu reduzido lote. Tinha seus temperos e remédios sempre verdinhos. Salsa, cebolinha, manjericão, marcela, hortelã, levante, funcho, poejo e a erva cidreira jamais faltavam. E as dálias eram as mais lindas de que se podia ter notícia. Tinha rosas brancas de causar inveja, inclusive uma especial para chá.
Fritava pastéis para o sobrinho Ernani vender; apenas para ajudá-lo. Os pastéis eram saborosos. O doce de laranja da terra, exclusivamente para agradar a suas visitas, era imbatível em sabor e maciez.
Figura carismática. Espontânea no falar e no sorrir. Comedida no alimentar e no vestir. Roupa sempre limpíssima. Moderada nos gestos e nos arroubos de alegria. Cantava com suavidade melodias que bem poucos conheciam; quase sempre quando estava costurando. Quando ocorria esquecer a letra, fechava a boca e ficava emitindo sons nasais, dentro do ritmo até se lembrar.
Demonstrava paciência constantemente. Sabia ouvir como ninguém.
Com minha vivência bancária sabia que ela não possuía sequer conta em qualquer dos dois estabelecimentos que havia na cidade. Tinha a generosidade e a fé de São Francisco de Assis e de tanto se doar não faltavam os que se lembravam dela. Toda vez que um dos sobrinhos matava um porco, uma banda inteira era separada para a Ticila, e lá iam os sobrinhos-netos com a gamela cheia, retribuir à Ticila o tributo por sua entrega, totalmente incondicional.
Não devia a ninguém nem teria o que receber de outrem. Tinha o bastante para quem sabe o que basta. Como sonhou John Lennon, no mundo utópico de “Imagine”: “Imagine all the people, living for today”, imagine todo o mundo, vivendo o dia de hoje. Assim era a Ticila, para ela bastava a vida. E vivia. Conselhos nem dava nem recebia. Se lhe chamassem ia com prazer, se ficasse no seu canto o prazer era o mesmo.
Livre como um pássaro. Independente e dona de seu nariz era serena para ouvir um pedido de votos de um candidato ou para escutar conselhos. Quem fosse à sua casa por um motivo desses, certamente, de volta, levaria na mente aquele sorriso enigmático, palavras neutras, cheias de amor, muita doçura e bondade. E, também com bastante certeza, tomaria uma xicrinha de café doce ou amargoso, depois de um copo d’água daquele pote que mantinha o precioso líquido na temperatura desejada.
Na sua fala espontânea e fagueira dizia sempre para que a gente brincasse mais, sorrisse bastante e mantivesse acesa chama da calma e da serenidade.
Além de homenagear uma tia eu quero aqui lembrar que todos nós temos uma Ticila em nossa história. Nós precisamos tê-la sempre junto com nosso desejo de ser e viver melhor.
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