Lili do Xisto

Publicado por Sebastião Verly 18 de março de 2010

Lili do Xisto

Na série que venho rememorando sobre pessoas notáveis, três primos merecem destaque: são os filhos do meu tio Xisto. Iniciarei pelo caçula, Hely Campos, o Lili. Meu pai falecera em Julho de 1953 e aqueles primos propuseram-se a nos apoiar.

Com onze anos de idade, eu tive a sorte de ser escolhido para trabalhar com o Lili, que além de primo, era afilhado de minha mãe. Mamãe contava que trabalhara na casa da família do meu tio Xisto, quando o Lili ainda era garoto de 4 a 5 anos. Era bastante travesso o menino. Muito amável, adulto e já casado, ele mostrava-me uma cicatriz ou marca na perna e dizia que se tratava de uma queimadura com colher de ferro quando ele fora fazer, com a sua madrinha e empregada, uma das suas gracinhas exageradas para uma criança daquela idade, justo no momento em que ela colocava brasas no ferro de engomar roupas.

O Lili cresceu e não deixava por menos: sempre que podia, armava alguma. Era brincalhão, irreverente por natureza. Muito espirituoso, nas ruas provocava o Jacinto Campos, o Tiambá, até sua morte, e depois disso a seu filho, figura totalmente desajustada no modo de trajar e na higiene pessoal, cujo principal prazer era correr atrás dos meninos que o chamavam de Milton Tiambá estalando o imenso chicote de cabo de madeira, embora sem atingir ninguém. O Lili também gritava o apelido “Coreba” para outro velho, cujo nome era desconhecido de todos. O “Coreba” fingia que se importava com as provocações, mas quando ninguém o percebia procurava dar um sinal de presença, pois, no fundo, gostava de ser provocado, para poder xingar, para a gargalhada de todos. Diziam na época que Pompéu se cobrisse com uma lona virava circo, se cercasse virava hospício. Lili atormentava a Petronilha, mulher do João Quirino, uma mulher muito feia de um velho sempre bêbado. Ele cutucava: “se eu tivesse uma mulher feia como você, Petronilha, eu não bebia cachaça; eu bebia era formicida”, o veneno preferido por 9 entre 10 suicidas. Encontrava sempre alguma “vítima” para suas troças. E muita gente procurava-o para fornecer mais “munição”, pois tinha grande senso de humor e adorava apimentar qualquer situação que desse para fazer graça.

Contou-me alguém da família que certa vez, quando o Lili ainda era rapazola combinara com seu próprio cunhado de colocá-lo dentro de um saco de aniagem, usado para embalar café em grão, e deitá-lo no caminho do Velho vendedor de pipocas que era a última pessoa a ir pra casa, lá pela meia noite, numa cidade sem luz. O cunhado, Anicésio, deveria ficar dentro do saco, gemendo, como se fosse uma assombração ou alma do outro mundo. Em seguida, ele e seus amigos procuraram o Pipoqueiro que se chamava Zé Roscão, contaram-lhe a estória e deram-lhe uma arma com balas de festim e orientaram-no para falar: “alma comigo eu passo fogo”, e atirar. Dizem que o Ni, como era conhecido o cunhado, surpreendido com os “tiros”, sujou-se todo.

O Lili participava de uma tradição muito antiga num dos bares da Rua Dona Joaquina, que era fazer uma galinhada, mas com um ingrediente especial: a galinha tinha que ser roubada. O principal prazer era a história da aventura que ficava, dos riscos, dos sustos, etc. Num determinado momento era feita a escolha do alvo: onde iriam roubar a galinha naquela noite. Percebendo os cochichos que o excluíam, o Lili viu que ele desta vez seria a vítima. Antes da equipe sair em diligência, o Lili os chamou e fez um apelo: “gente, lá tem um frango vermelho que quero que vocês respeitem, pois a Elza quer deixar ele pra galo!”

Ainda está vivo na cidade de Pompéu, o Soquim, filho do Joaquim Afonso, vereador de vários mandatos, com quem meu primo fez as maiores pegadinhas, que naquela época não tinha esse nome não. Numa delas, o Soquim, mulherengo como ele só, havia levado para Pompéu, uma mulher de uma cidade vizinha, com quem vivia maritalmente. O meu primo combinou com o dono do açougue, para que ele chamasse meu ingênuo irmão que tinha apenas 10 anos e dissesse-lhe que o Soquim, que era também taxista ou motorista de praça, pediu que arranjasse alguém para levar uma fressura ou bofe de boi para a tal mulher com quem vivia. Isso, em um dia que todos sabiam que no Soquim estava viajando. Os vizinhos olhavam, riam, e podemos imaginar quanta coisa passava em suas cabeças…

Lili vivia aprontando com todo mundo. Até com a própria esposa inventava suas gozações como os tais primeiro de abril, pegadinhas que ela caia facilmente; com os amigos ou com adversários vivia espalhando fofocas de brincadeira mais para criar situações engraçadas que atritos. Quem tiver oportunidade de ler o livro “Coquetel Agridoce”, de autoria de Irilda Porto conhecerá um pouco mais de seu espírito guerreiro e verve brincalhona.

Ainda jovem participou da política e foi um dos vereadores mais votados de Pompéu. Inovava saindo pelas ruas poeirentas da cidade com seu carro preto e a gritar no alto falante: ”ô fulano de tal, não se esqueça que o Gordão é candidato”. Era da UDN, pregadora de moral e ética, uma espécie de PT da época. Da UDN de Milton Campos, político conhecido por sua integridade, que veio a ser seu compadre; do honrado Gabriel Passos que ele apoiou para o governo de Minas; Do Francisco Campos, doutor Chiquinho, ou Chico Ciência, ex-ministro da justiça do Estado Novo, na época dono da maior biblioteca particular do Brasil, a quem recebi dezenas de vezes na “venda”, porque sempre que ia a Pompéu, onde tinha a Fazenda do Indostão, passava algumas horas com o Lili; de Carlos Lacerda, cuja oratória e brilhantismo o estimulou a ter um rádio a pilha, pois ainda não havia energia elétrica na cidade, para ouvir as criticas do mais ácido político que o Brasil já teve. Além do Jornal Estado de Minas, assinava a Tribuna da Imprensa, do Lacerda, que tinha como símbolo uma lanterninha e, não só assinou “O Binômio” – o bravo jornal de Euro Arantes e depois do José Maria Rabelo, cuja marca era a irreverência. Numa inovadora campanha de assinaturas realizada em 1954, Lili incentivou muita gente na cidade a assinar o jornal que tinha conteúdo, cores e tamanho fora dos convencionais. Lili era um político combativo, como tudo que lia.

Envolvia os eleitores do PSD, partido adversário, em negociação de títulos eleitorais para comprovar que eles eram venais e só votavam no partido dos seus respectivos patrões por interesses. Uma vez, ele denunciou um funcionário e cunhado do prefeito contando que o mesmo comprara uma peça cara, na sua venda, na conta da prefeitura, para o carro particular. Ganhou como prêmio um processo do qual se saiu muito bem.

Lili era o caçula dos irmãos homens, e os dois mais velhos sempre apareciam nas situações que exigiam botar uns panos quentes. Ele, um crítico tremendo, vivia criando confrontos, mas era de uma doçura sem par. Era um das pessoas mais simpáticas e queridas que já conheci. O finado Dr Paulo Campos Guimarães, prócer político da cidade naquela época, uma pessoa inteligente e fina, também o admirava e o defendia em seus arroubos de crítica. Lili era um símbolo da coragem, bravura e da ética. Sabia da situação de todos os parentes mais próximos e quem precisasse de sua ajuda lá estava ele com sua capacidade a suprir as necessidades das pessoas queridas.

No ano de 1954, eu na minha santa ingenuidade, ouvi que ele lia e relia para os fregueses da venda uma notícia no jornal “Estado de Minas” que concluía com a frase: “mais uma vez, a velha legenda foi confirmada: galo forte, vingador!”. Como ele era atleticano fanático, e eu por meu lado sempre abominei a idéia de vingança, peguei a borracha e apaguei aquela frase. Pensava que estava tirando de sua mente aquele sofrimento. Imaginem a reação do meu primo e patrão!

Ele gostava tanto do Atlético que chegou a criar, junto com amigos, o Clube Atlético Pompeano, o alvi-negro de Pompéu, à imagem e semelhança do “Galo”. Foi seu primeiro presidente, e construiu o alhambrado com trilhos que sobraram do desmanche da antiga ferrovia Rede Mineira de Viação que passava próximo à cidade. O hino do clube, de reconhecida beleza e vibração foi composto por sua esposa, Dona Elza. Dona Elza Afonso Tavares, que também incluirei nesta série, era professora de artes e animadora social. Tiveram cinco filhos que herdaram a verve da mãe com a boa mistura do pai…

Aprendi muito com meu primo Lili do Xisto! Trabalhei com ele cerca de dois anos e sempre que me orgulho de ser ético, corajoso e mostrar amor e doçura eu me lembro dos nossos melhores momentos. Morava em sua casa e dormia no quarto com as suas crianças. Eu era realmente uma pessoa de casa. Creio que herdei muito dele, outras vezes acho até que é seu próprio espírito que baixou em mim, tantas são as semelhanças de nossas atitudes e ações de indignação e rebeldia.  Quando me flagro fazendo uma das mais arriscadas aventuras, a primeira imagem que me vem à mente é a do Gordão, como ele mesmo se nomeava.

Talvez a maior prova disso é que me inspirei no traço de sua assinatura HelyCampos para bordar a minha, VerlyCampos, quase idêntica à dele.

Comentários
  • antonio carlos LOCÔ 5049 dias atrás

    CARO VERLI, FOI COM GRANDE ALEGRIA QUE HOJE LI SEUS ESCRITOS NO PORTAL METRO, VEJO QUE VC COMO A MAIORIA DOS QUE SAEM DO INTERIOR, COMO EU, AINDA GUARDAMOS DENTRO DE NÓS A HISTÓRIA QUE VIVEMOS E OUVIMOS EM NOSSA INFÂNCIA QUE FELIZMENTE É MUITO RICA. PARABÉNS, CONTINUE A NOS LEMBRAR DE NOSSA ORIGEM.

  • Carlos Foscolo 5272 dias atrás

    Também conheci o Lili,quando tinha, se não me engano, sua loja defronte a casa de meu sogro Hélio Lacerda. Não tive, infelizmente, a oportunidade de muitos contatos com ele, pois faleceu ainda muito jovem, mas sempre ouvi falar deste seu lado “gozador” e também de sua brilhante inteligência, legado que com certeza deixou para suas filhas e filho. Sua esposa, Dona Elza, foi minha professora de artes, no “Grupo Escolar Jacinto Campos” e sempre foi uma pessoa muito envolvida em atividades comunitárias e sociais. Lembro-me do Dr.Chiquinho, vestindo sua costumeira bermuda — o que chamava a atenção de todos — acompanhado de seu motorista alto, moreno e forte, parados, com frequência, em frente da loja do Lili, onde mais tarde seria a “Loja do Celino”.
    Meu saudoso amigo Edmundo (Gerson Edmundo de Castro) que era proprietário do Bar Calhambeque, ex-Bar do Roscão, onde todo esse pessoal se reunia para as brincadeiras, gostava de contar as estórias do Lili e de suas gozações com os tipos populares. Dizia o Edmundo que o Coreba — que eu não conheci — quando se aproximava de uma roda e era ignorado, ele mesmo dizia: “Coreba está!” E, aí, tudo começava.
    Mais uma página da história pompeana para nosso deleite.
    Obrigado, Tião!

  • Grijalva Maria de Campos/Belo Horizonte 5317 dias atrás

    Tião,
    Parabéns, ótimo este texto por trazer à tona este personagem que tanta influência teve dentro da história politica e social de Pompéu. Seu artigo me traz doces recordações da minha infância, devido à ligação do meu pai com o Xisto e todos os seus filhos, dos quais era muito amigo. Eu me recordo do Lili, mas como era muito criança e saí de Pompéu cedo para estudar fora, não cheguei a conhecê-lo nos detalhes que aqui você nos relata, de ser ele uma pessoa brincalhona, alegre e comunicativa. Sei que era muito amigo do meu irmão, o Hipólito e além disto foi sócio do meu pai na fábrica de laticinios. Vale lembrar aqui que a expressão “Coreba” até hoje ainda é muito usado em Pompéu quando se trata de fazer gozação com uma pessoa e a mesma fica chateada mas depois volta para provocar.
    Um grande abraço,
    Grijalva

  • Marcos Leonel de Campos 5318 dias atrás

    Ótimo, para nós pompeanos. Conhecer a história de pessoas que ajudaram a construir nossa cidade é muito importante. Não cheguei a conhecer o Sr Hely Campos. Mas esta família Campos, são conhecidos pela inteligência, bons políticos e articuladores. Conheço sua esposa e filhos que continuam este lavrado.

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