O pesadelo não acabou

Publicado por Sebastião Verly 28 de março de 2019

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Não acreditava em Deus, no aquecimento global e nem muito menos na existência da Tuvinskaya, uma pequena república da Federação Russa na divisa com a Mongólia onde o músico André Abujamra teria descoberto com suas pesquisas de campo uma nova e incrível técnica vocal. Não dava nenhum crédito para a morte. Mal acabou de ler “A solidão dos moribundos” de Norbert Elias e o emprestava para os amigos para familiarizá-los com a tenebrosa, dizia sorrindo.

Dia após dia falava com sua habitual grosseria que ninguém sabia mais fazer o serviço da sua repartição. Alguns colegas reclamavam que ele não tinha coragem de levar aos dirigentes essas coisas que falava à boca pequena.

-“Falo até para o Presidente da República”… “O que se faz aqui não tem nada a ver com a missão e os objetivos do nosso Departamento.“

Você já cansou todo mundo com sua lengalenga, dizia-lhe o administrativo da seção.

Fazia ouvidos de mercador e entrava em detalhes sobre a coleta seletiva de recicláveis, uma das obrigações do Departamento.
“Esse método deseduca. O tal munícipe, como vocês batizaram o cidadão, junta uma porcariada em sua casa – pets ensebados, embalagens de ovos, jornal velho cheio de xixi de cachorro, copos e vidros quebrados – e joga tudo no meio da rua, mais para ficar livre de tudo do que para contribuir com a reciclagem e o meio ambiente. Algum desses munícipes sabe lá quantos caquinhos de vidro furam diariamente as mãos dos triadores nos galpões? Alguém sabe por quanto vendem um quilo de vidro e o de papel? E o que vai para a reciclagem mesmo ou para o aterro? Ninguém está nem aí para essa tal seleta coletiva, como alguns dizem!”

Depois de um Acidente Vascular há quatro anos, algumas pessoas passaram a ser mais tolerantes com o velhote. E ele abusava. Nos últimos meses do ano passado foi afastado compulsoriamente através de atestados médicos fornecidos pelo próprio médico da instituição. Mas não se emendou.

Continuava suas criticas e perdia quase todos os amigos. Um deles, que se dizia comunista, preferiu abrir mão dos princípios socialistas a continuar sua amizade com o ancião.

Ninguém mais o agüentava.

Nesta sexta feira, uma notícia representou a gota d’água: depois de ler nos jornais a informação sobre os contêineres da coleta seletiva que ajudou a instalar esbravejava pelos corredores:

“Isso é um absurdo! Saber o que se passa em nossa instituição pelos jornais. Chegamos ao fim.”

A pressão arterial que já andava na casa dos 22 x 15, explodiu e o coração não resistiu. Caiu ali mesmo entre as mesas de dois colegas.

Parecia um final feliz. Todos estariam livres das suas críticas ácidas.

Ledo engano!

Duro e frio ali no chão, foi carregado até a mesa de reuniões e ajeitado assim-assim para não assustar todo mundo.

Chamaram a chefe; o que fazemos, agora?

Chamem o médico!!!

Para quê?

Então liguem para a família dele.

Que família?! Qual é número?!

Separado há 17 anos, vivia trocando de namoradas tal como trocava de tênis. E a última ele contava, já havia sentenciado: você só me interessa vivo. Morto eu quero é distância de você, dizia a interesseira. Ele profetizou tal situação e avisava sempre: minha ex-mulher não me quer vivo e muito menos morto.

Diante do presunto quer dizer do defunto, uma colega começou a chorar, mas teve forças para dizer: como ele está bem como morto.

O fato exigia respeito, seriedade e oração. Um de seus poucos amigos, obtemperou: o momento é de tristeza, mas ele vai me perdoar porque a gente tem mais é que rir dessa situação.

Cada um chegava perto e mostrava-se aliviado. O administrativo duplamente. O tal ex amigo, respirou tranquilo dizendo: “agora eu posso exercer minha liderança sem ser contestado.” As colegas relembravam os galanteios seguido das brigas pela melhoria da qualidade dos serviços. O ambiente ganhou um clima de comédia e dentro de poucos minutos o riso corria solto. Todo mundo lembrava um caso, uma situação que se relacionava com a vida ou com a morte do colega.

O relógio caminhava para as 17 horas e ninguém decidia o que fazer. Alguns haviam agendado o 17 e 1 no Bar Oratório, como de costume nas sextas feiras. Outros precisavam ir para a escola. De quem era a responsabilidade de ficar com o falecido?!

O prédio fechava às 18 horas e depois desse horário ninguém mais poderia entrar no edifício. Levariam o amigo (depois de morto virou amigo de todo mundo) para o 17 e 1 no bar? Deixariam-no em cima da mesa até segunda feira? E a decomposição? Até o término dessa crônica ninguém havia decidido o que fazer. Ainda há tempo de você ajudar. Se tiver uma idéia envie sua sugestão para o email criado na hora para receber contribuições: [email protected].

Comentários
  • Carlos Foscolo 5077 dias atrás

    Excelente!
    Não conhecia este lado escritor do Sebastião Verly, embora o conheça desde praticamente a época em que se mudou para BH, e morava na “Pensão” de minha Tia Nair, na Rua Pernambuco, onde foi meu companheiro de quarto.
    Na época, o Sebastião Verly, ou “Tião do Gonde” — como era conhecido e chamado em nossa Pompéu — já era um filósofo e era de se prever que se tornaria um grande escritor.
    Li todos os artigos com muita satisfação e orgulho de conhecer tão bem seu autor.
    Parabéns!

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