XIX – Flashes entre Partidas de Buraco

Publicado por Bill Braga 18 de maio de 2022

Ao passo que conto da chegada na Pinel, ainda me encontro cativo nesta simpática clínica. Em meio a Sandras, Valérias, Daniéis, Moniques, Fernandas, e tantos outros companheiros de jornada. Uns que se foram, outros que ficam. E eu que já estive do lado de fora, voltei, e não sei quando sairei novamente. Só me resta escrever, é a única forma de não deixar adormecer o potencial revolucionário dentro de mim, minha resistência pacífica aos remédios, a expressão máxima de mim mesmo. A escrita não é uma opção, é uma necessidade.

Assim como eu tinha uma necessidade, quão tola!, de entender o que eu passava, me encaixar em padrões, saber qual tipo de louco eu era: psicótico, maníaco, depressivo, esquizofrênico? Temos esta necessidade. Não nos satisfazemos em ser apenas, precisamos ser encaixados, categorizados. Em minhas conversas com o Lucas, o homem-mor de branco, sempre precisava saber. Afinal, não é aceitável sermos trancafiados sem um atestado de loucura, eu merecia ao menos saber a causa trancafiatis. As respostas eram sempre evasivas, como aqueles que sempre buscam o não-dito no inter-dito. Os lapsos. Mais tarde fui saber do tal DSM – IV, uma espécie de catálogo de todos os transtornos mentais, para “facilitar” os diagnósticos psiquiátricos. Baboseira. Eu me encaixava em vários, e ao mesmo tempo em nenhum. Era um paradoxo sob duas pernas, com uma mente que enxergava além. E incomodava. Nem mesmo ali dentro estavam dando conta de mim. Sarcasticamente, ironicamente, eu desafiava o saber psquiátrico. Exumem Freud, tragam Lacan, evoquem Jung, seus padrões não hão de me enquadrar. O universo da subjetividade, nunca será reduzido a diagnósticos pseudo-científicos. A loucura está a um passo da genialidade, ou a genialidade a um passo da loucura? Ou os dois no mesmo terreno? As clínicas não trazem esta resposta, nem estão prontas para esta pergunta.

Causas, sempre precisamos de causas. Relembro da viagem do Rio, Sandra, Sophia, nome do conhecimento, todo o desejo pulsante. Juiz de Fora, Tatiana, meu pai, Marquinhos, a explosão. A viagem de volta. O reencontro com a família. Com a namorada. Flashes sem conexão. Não há causalidade, não há linearidade. Há sim uma constelação de sentidos ilógicos, pulsantes, pululantes. Se quiseres buscar uma causa, podíamos retroceder aos traümes de infâncis (sabe-se-lá quais!) ou a uma explicação químico-biológica. Ou nenhum dos dois. Melhor caminho. Mas há sempre um fato ainda não dito, há buscar, que pode ajudar a tecer os sentidos. Me lembro de um, antes de Juiz de Fora, antes do Rio, antes de chegar até aqui na Pinel. Há quem diga que foi o começo de tudo. Eu não creio em começos, nem meios, nem fins. Tudo são nexos criados e recriados ao nosso bel prazer.

Era um sábado de carnaval, eu ainda em BH, preparando a ida para uma roça. Estava com minha namorada, ela mesma, e voltávamos para a minha casa para os preparativos finais. Parei o carro de qualquer jeito na garagem, a intenção era trocar o som, e subir rapidamente, para já sairmos. O afã da paixão que nos tomou ao sairmos do carro, nos levou diretamente ao quarto. E nesse meio tempo, entre beijos e amassos, tocou meu telefone. Meu irmão, o mais velho, chegara e não conseguira estacionar. Exigiu, um tanto exaltado que eu descesse para estacionar corretamente. Uma típica exalação e demonstração da soberba dos sãos. Quiçá da própria estupidez inerente ao egoísmo humano.

Me recompus e quando abri a porta, o elevador em frente abriu-se também. Ele saiu destilando sua ira racional em meio a xingamentos e acusações. Imediatamente fiquei puto. E se seguiram xingamentos, acusações. Talvez fosse a primeira vez que o retrucasse. Bati de frente. E a batida foi feia. Descemos no elevador, trocando as mais estapafúrdias palavras, como se nossos testosteronas se exprimissem em palavras. O impulso era destilar um belo soco na cara, acabar com a discussão de uma vez. Segurei-me. Talvez pelo amor fraterno. Mas o impulso do soco se transformava em palavras mais violentas que gestos. O sangue subia rapidamente à cabeça, sentia-o correr rapidamente nas minhas veias a cada palavra mal dita e mal ouvida. As duas, pobres namoradas, olhavam com olhos esbugalhados aquela cena, estáticas, como quem via a épica disputa de Caim e Abel. Entrei enfurecido no carro. Queria descer, xingar mais, estapeá-lo, socá-lo. Ela me segurou. Sai acelerando da garagem, sem rumo, com a raiva transpirando em mim.

Parei no primeiro posto, na esquina de casa. Chorei copiosamente. Lágrimas e mais lágrimas acompanhadas de desabafos, palavras ininteligíveis, indecifráveis, sempre acompanhadas de palavras doces da minha companheira. Nada me acalmava. A raiva transmutara-se em decepção, em tristeza, em sofrimento. Não voltaria para aquela casa enquanto ele estivesse ali. Não compartilharia o mesmo teto. Era a hora de tomar meu rumo, era a hora de sair do casulo.

Mas ainda havia uma noite antes do carnaval, toda aquela avalanche de sentimentos paradoxais não se curararia em um rio de lágrimas. Se curaria ainda um dia? Resolvi que deixaria minha namorada em casa. Era a hora de imergir em mim mesmo. De ficar só. Deixei-a e segui meu rumo, sem saber qual seria.

Alguma causalidade palpável? Alguma ponte que me trouxe de uma briga familiar, pré-carnaval até a Pinel? Não. Os descaminhos não são retos, simples, diretos. Mas muito aconteceria ainda aquela noite. Fatos bem objetivos, marcas indeléveis. A pulsão incontrolável que abriria o mundo em minha mente… Sentimentos são deveras perigosos. Por ora, devo me reunir aos amigos, para mais uma louca partida de buraco neste cativeiro simpático.

Comentários
  • M Amalia Marques 4403 dias atrás

    OI Bill! estou perdida no tempo e espaco. Nao consigo entrar no site. Talvez exista algum bloqueio par locais fora do Br. Parei em Santa Tereza. Sera que eu conseguiria ler em algum outro lugar as publicacoes passadas?
    Beijo grande.

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