Martírio: um território ampliado

Publicado por Antonio Carlos Santini 26 de setembro de 2022

Martírio

Quando se fala em mártires, nosso pensamento se retrai automaticamente aos tempos da Igreja primitiva, no Império Romano, quando os cristãos eram lançados às feras no Coliseu, decapitados como Paulo de Tarso ou besuntados de alcatrão e “acesos” em postes para iluminar os jardins dos césares.

No entanto, o século XX foi, sem termos de comparação, o século que mais registrou a morte de cristãos perseguidos por sua fé, entre estes os católicos mexicanos no governo maçônico de Plutarco Elias Calles, os cristãos assassinados pelo nazismo alemão, pelo comunismo soviético, pelos extremistas islâmicos, e que ainda continuam perseguidos em várias nações onde a população cristã é minoria, como Índia, China etc., tendo seus templos e escolas demolidos e hospitais incendiados.

No início do cristianismo, quando o Império Romano adotava uma “religião de Estado”, qualquer pessoa que se declarasse cristã era vista como um “pagão” aos olhos dos responsáveis pela religião oficial, pois a nova crença ameaçava desestabilizar as estruturas sociais ligadas a ela. Desde então, a Igreja considerava como “mártir” apenas os fiéis que haviam morrido “in odium fidei”, por ódio à fé cristã.

Hoje, porém, o mártir cristão passa a ser visto com um novo olhar, diferente dos primeiros séculos da Igreja. Nossa época presenciou uma legião de vítimas de governos totalitários e ditadores sangrentos que, em geral, não tinham preocupações de ordem religiosa, mas apenas viam os grupos cristãos como um obstáculo para sua atuação política, já que os valores cristãos fundamentais de justiça e de paz não compactuavam com aquele contexto de violência e opressão.

Um caso exemplar é o de São Maximiliano Kolbe, assassinado em um campo de concentração nazista na Segunda Guerra mundial. Durante seu processo de canonização, muito se discutiu a respeito da possibilidade de ser considerado, ou não, um verdadeiro “mártir”, pois o contexto de sua morte era diferente do contexto clássico dos martírios. Foi preciso ampliar o conceito tradicional de martírio para incluir seu gesto de amor, oferecendo-se para morrer em lugar de outro prisioneiro condenado ao bunker da morte.

Em 17 de outubro de 1971, na missa de beatificação de Maximiliano Kolbe, o Papa Paulo VI o chamou de “novo mártir da Polônia”. Na homilia de sua canonização, em 10 de outubro de 1982, João Paulo II o classificou como mártir do amor: “A morte sofrida por amor, em lugar do irmão, é um ato heroico do homem mediante o qual, juntamente com o novo Santo, glorificamos a Deus. D’Ele de fato provém a Graça de tal heroísmo, deste martírio”.

Para Dom Armand Veilleux, da abadia de Notre-Dame de Scourmont, o que está em questão é que atualmente nossa concepção sobre os direitos fundamentais da pessoa humana são um fruto direto do Evangelho, e não existe nada mais evangélico que a solidariedade com os pequenos deste mundo.

É assim que os “novos mártires” – como o arcebispo Oscar Arnulfo Romero, assassinado por militares em 1980, em El Salvador, em plena celebração da missa, por defender os direitos dos pobres – acabam martirizados por motivações de ordem política, quando sua “práxis” incomoda mais que sua “teologia”.

Mas o território do martírio deve ser ampliado ainda mais quando consideramos aqueles que aceitam arriscar sua vida para cuidar do próximo. É o caso dos médicos e enfermeiros, leigos, religiosos e religiosas, que deram sua vida no cuidado das vítimas de epidemia do vírus Ebola, no Congo. Recentemente, a pandemia veio mostrar que os cristãos não detêm o monopólio do martírio. Aliás, já sabíamos disso desde que numerosos imãs muçulmanos foram mortos por extremistas por defenderem a paz e recusarem a violência.
Não só a fé, mas a justiça e a solidariedade adubam o solo da sociedade humana. E, ao que se vê, a legião dos mártires só tende a crescer…

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