Neli do Geraldo Vaz: A Alma Silenciosa de Pompéu – parte II

Continuação da parte I: https://www.metro.org.br/sebastiao/neli-do-geraldo-vaz-a-alma-silenciosa-de-pompeu-parte-i/
Neli não era artista de palco, nem política de palanque — mas era guardadora de cultura, tecelã de encontros, e mãe de muitos afetos. Em sua casa, a boemia tinha nome e sobrenome: alegria decente, famílias dançavam ao som da sanfona e do cavaquinho, embalados por risos, passos e lança-perfume, que naquela época era perfume de carnaval e não de perigo. O bloco que ela criou não tinha luxo, mas tinha alma. Era puxado por músicos de coração aberto e seguido por bailarinas morenas que não se diziam descendentes de negros, mas que carregavam no corpo o ritmo ancestral do samba e da alegria. As músicas eram trazidas do Carnaval Carioca. Neli lembrava das músicas principais. Deixa as águas rolar…As águas vão rolar, Samba de pé no Chão (Tirei a sandália dela/ no meio do salão/ mesmo assim continuou/ a dançar de pé no chão…..)
Era só alegria. O bloco de Neli dava início ao carnaval pompeano, bem como, reafirmava a força da cultura popular como expressão legítima da identidade local. Em tempos em que a cidade ainda buscava formas de se afirmar culturalmente, Neli foi uma pioneira — uma mulher que, com coragem e afeto, transformou sua casa em palco, sua vida em festa e sua presença em legado.
Vale registrar que houve a primeira eleição de Rainha do Carnaval de Pompéu, sendo ela a primeira eleita.
Critério: a que pulava mais alto.
Tempos mais tarde, Neli mantinha em sua casa uma bela foto sua segurando dois frascos de lança perfume. Um dia, contou-me Giani, um de seus netos, ele ainda criancinha brincou: “Vó quem sabe a senhora cheirou esse lança perfume”. Neli, carinhosamente, disse-lhe: “Me respeite, eu sou sua vó”!
No final da década de 1950, depois de fechar o Café Brasil, mudou-se para a avenida Capitão Joaquim Antônio, que nos anos 60 virou Praça Kennedy, e atualmente Praça Levi Campos.
Agora era Pensão Santo Antônio e prosseguia com tinturaria, a que deu continuidade. Segundo dizem a tinturaria servia para dar profissão e emprego para moças que precisavam de amparo. No final da década de 1960, além da Pensão Santo Antônio e da tinturaria, foi também proprietária do Hotel Kennedy, situado também na praça do mesmo nome.
Gostava de festas e comemorava os acontecimentos, aniversários e a festa de Santo Antônio, em grande estilo. Quando mais jovem, não abria mão do chá da tarde e o jogo de cartas com as amigas, uma vez por semana. Enquanto manteve a Pensão, acontecia também, em um dia nos finais de semana o jogo de Víspora, antecessor do bingo, oportunidade em que reunia amigos e hóspedes.
No início de 1978, fechou a tinturaria, abriu mão do hotel mas manteve a pensão.
Cuidadosa, preocupava-se com todos, tendo, inclusive, uma palavra de conforto para cada ocasião. Sua casa serviu de pouso para fazendeiros em decadência como o Zé Machado, homens que já haviam tido terras e prestígio, mas que agora apenas buscavam abrigo, e também gente da roça que vinha à cidade em busca de descanso.
Ela os acolhia sem julgamento, como quem entende que a vida é feita de ciclos, e que a dignidade não se mede por posses, mas por afeto. E como se não bastasse, estendia sua generosidade aos que vinham da roça, cansados da lida, em busca de pouso e acolhimento. Neli os recebia com dignidade, sem perguntar de onde vinham — apenas oferecia o que tinha: afeto, comida quente e respeito.
Neli do Geraldo Vaz era robusta, bela, e dona de uma elegância que não vinha de roupas, mas da simplicidade dos gestos, Neli era muito dinâmica, de espírito empreendedor, e realizava suas atividades sempre cantarolando.
No início dos anos 2000, aos 80 anos encerrou em definitivo as atividades da Pensão. A velhice se lhe apresentou com grandes dificuldades. Em 2005, foi vítima de um AVC, o que lhe tirou a noção de si mesma. Tolerante, esquecida de si mesma, nunca reclamava. Quatro anos depois, após uma queda, o que lhe custou a fratura do fêmur direito, veio a falecer em 20 de novembro de 2009.
Neli, não aparecia em homenagens oficiais, nem teve seu nome gravado em placas. Mas, no mais alto nível cultural da cidade, seu nome sempre era sussurrado com reverência. Porque Neli não precisava de palco: ela era o próprio espetáculo. Não precisava de microfone: sua voz ecoava no coração de quem a conheceu. E assim, como quem planta flores em silêncio, Neli do Geraldo Vaz permanece viva — na memória, na música, na dança, e no afeto que ela espalhou por cada rua onde passou.
Vale a ressalva para uma homenagem conferida à Neli: lembrada e respeitada, tem no PSF (Posto de Saúde da Família) situado à Rua José Cipriano de Campos, uma sala em sua homenagem.
Neli do Geraldo Vaz, matriarca do povo, uma mulher que atravessou espaços e tempos com dignidade, beleza, talento e força silenciosa. Neli do Geraldo Vaz não aparece nos livros de história, mas vive na lembrança de quem dançou em seu quintal, dormiu em sua rede ou ouviu suas histórias. Sua vida foi um carnaval de afetos, uma procissão de generosidade, um poema vivido em voz baixa.
Pompéu, uma cidade inteira, por décadas, dançou, cantou e se emocionou ao redor de uma mulher que nunca precisou de manchete para ser celebridade: Neli do Geraldo Vaz, a Neli Barbosa: guardiã da cultura e da alegria pompeana. E ali, entre batuques e bênçãos, Neli ensinava que cultura não é só tradição: é gesto, é acolhimento, é memória viva.
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