O Cavalo da Savassi

Publicado por Eulália Jordá Poblet 15 de março de 2011

Quando cai a noite, Belo Horizonte tateia algum movimento cultural na convivência animada dos cafés e livrarias. Por alguns segundos, trechos de poemas parecem brilhar, encantados, se esvaindo languidamente pelos bueiros, junto às águas pluviais dessa cidade assentada sobre rios.
Mas as minúsculas felicidades de B.H. são precárias e passageiras pois são obrigadas a acompanhar o ritmo mineiro escravocrata que maltrata e maltrata os animais, pautado em mil enganos, e que foi assim imortalizado por seus escritores e cantores.
Pelos “caminhos de Minas” ouvem-se citações de pássaros cegados para cantar melhor, de rodas de carro de boi que equivocadamente se fazem passar por belas tradições do campo, de boiadas “dominadas” pelo homem, essa espécie caricatural que se autodenomina heróica quando na verdade o que faz é subjugar e escravizar aqueles que não podem se defender.
A percussão dos cascos de cavalos que para além do interior mineiro transbordam até a cidade, é trôpega, soluçante, uma ignomínia traduzida para o asfalto. Seus maestros sem maestria, os chamados condutores de carroças, tem o porte dos tão ainda recentes feitores de escravos no ponto odioso onde Minas é tão repleta de memória e fetiches tais como algemas, correntes e postes para torturas.
O bom ouvido, aquele afinado para escutar mais do que para ouvir, percebe sob o som monótono dos carros essa música hedionda que corta a Savassi como um mau augúrio. Na verdade assemelha-se mais à uma anti-música ou à perversão dela, o som do cavalo manco, puxando uma carroça repleta de um peso lancinante que não mantém correspondência nem com a condição do animal nem com aquele que realiza a audição desse melancólico evento.
O cavalo manco é triste, magro, velho. Seu olhar nunca vagueia pelas laterais pois há um impedimento físico colocado pelo “dono” para que não se distraia, de tal forma que seu olhar vazio só possa se derramar para a frente ou para o chão. O que resta ao cavalo é um esvair-se autista, um isolar-se da sede, da fome e do tédio talvez apenas em uma campina imaginária da qual apenas os animais escravizados possuam o vislumbre.
O fato de se apresentar com diferentes “donos” sugere que seja um animal de aluguel, ficando assim à mercê de descompromissados jovens e velhos que o chicoteiam obedientes apenas à aleatoriedade de seus temperamentos e humores.
Os carros e os transeuntes mal notam esse cavalo ofegante que muito além deles, já não nota nada, pois parece estar quase cego. E que interesse poderia haver, se enxergasse, um mundo de animais humanos agitados e esvoaçantes impedindo-o de chegar até a leveza de sua campina?
As pessoas que atam os animais às carroças são invariavelmente pobres lembrando mulheres pobres de outrora que extraiam seu único sustento de negras escravas que vendiam doces para suas amas decadentes. Esquecem-se que tanto hoje como naquele tempo,viver do sofrimento de outro, mesmo quando se é pobre, é vil.
A BHTRANS e o DETRAN, Departamento de Trânsito, do trânsito dele, cavalo, nada sabem. As carroças não são emplacadas, não são multadas. Os bichos trabalham de noite, de dia e de madrugada. O peso não é controlado. Os funcionários não verificam se há balde para água e há quantas horas o animal está trabalhando, se suporta o peso e se está alimentado, se a égua está grávida, se está com ferraduras ou tem idade para o trabalho.
Belo Horizonte dorme sobre o pesadelo dos animais, em um mundo que evita se acordar porque muitas modificações teria que realizar. A desconfiança que obstaculiza melhoramentos assim como a ausência de generosidade em favorecer o outro – no caso, os bichos – podem representar traços de um avaro espírito mineiro que pode não ser apenas uma lenda.

Comentários
  • Eulàlia Jordà-Poblet 4709 dias atrás

    Sí, Mario Calvit, pienso lo mismo que piensas. Siempre quando encuentro personas que tienen una visión antropocentrica – en el momento aún són la mayoria- a respecto de los animales y su sufrimiento, me acuerdo de la esclavitud negra en Brasil. Un poco antes de la aprovación de las leyes que derrubaron la esclavitud, había muchas señoras blancas de edad que tenían como unica fuente de sostén, el trabajo de jóvenes esclavas que hacian dulces para venderlos por las calles. El dinero era integralmente de sus “dueñas”. Muchas personas arrazonaron en este tiempo,
    que no se diera la libertad a las esclavas por motivo de que dejarian sus dueñas sin dinero para vivir. Hoy esto nos suena imposible que alguien así pensara, pero, de verdad, lo pensaron, lo dijeron, lo escribieron. Esto se parece mucho con la questión de los caballos. Encuentro que sus “dueños” deban buscar otras formas éticas de ganar su vida, no cón la esclavitud destos animales.

  • mario calvit 4710 dias atrás

    Que articulo tan interesante. Si comparamos muchas de las legislaciones de nuestros paises latinoamericanos son completamente indiferentes a las regulaciones del sufrimiento animal. Volcados en la preocupacion del sufrimiento humano y la pobreza nos olvidamos que el cuidado de una no hace menos importante a la otra.

  • Sebastiao Verly 4959 dias atrás

    Já escrevi e divulguei muitas vezes que os donos de animais os amam bem mais do que essas senhoras que falam por ouvir dizer. Talvez, se tivessem filhos para criar, pensariam diferente. Só os filhos tornam as mulheres humanas.
    Eu chego a me emocionar com o Sr Márcio um dos mais antigos carroceiros da Capital, quando diz que seu cavalo dorme dentro de sua casa, num quarto ao lado do seu. Que vai ao sacolão comprar cenoura para seu cavalo.
    Só quem convive com os carroceiros e sabe o que representa para eles os seus animais, pode aquilatar o quanto eles amam esses bichinhos.
    Há no momento, um movimento das pessoas mais reacionárias da Capital, criticando os carroceiros com apoio até de Secretários despolitizados.
    Não vejo essas senhoras denunciarem os maus tratos das reclamarem das moças e rapazes, pessoas jovens e idosas, que varrem as ruas à noite ou dos carrinheiros que catam materiais recicláveis a noite toda.
    Ah, dirão essas alienadas madames, eles ganham para fazer isto.
    Temos de lutar primeiro por pessoas humanas. Por nossos filhos e pelos filhos dos pobres trabalhadores.
    E depois, com conhecimento de causa, pela defesa da vida em todas as suas manifestações.

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