Doce recordação de Dengo

Publicado por Edmeia Faria 21 de agosto de 2014

Ao amigo violonista Dengo
e seus companheiros,
músicos que me tocam.
In memória

Ouçam  o som de violões que vem do alto! O céu está em festa. É a chegada do clássico violonista pompeano, para comemorar seu centenário entre velhos amigos e músicos que influenciaram o seu estilo e repertório, ou  tocaram com ele em algum momento.

Ia completar cem anos em dezembro o músico e doceiro Dengo. E a família e os amigos já se preparavam para uma grande celebração. Mal sabiam que lá em cima, na Casa do Pai, já estava tudo preparado.  Abismo de Rosas, Sons de Carrilhões o esperam no clássico encontro com Dilermando Reis, alma afim, que influenciou sua carreira solo.

Escutem! São agora dois violões; dois clássicos, ensaiando Claire de Lune e Sonata ao Luar para um concerto com Debussy e Beethoven, surpresos com suas músicas criadas para piano, interpretadas magistralmente pelo violão, instrumento do povo.

E já se reúnem os músicos do Conjunto Regional em que tocava o nosso já saudoso violonista: Celso Nunes no pistom, Pereira no bandolim, Geraldo Banjo no banjo, Nazareno Porto no Acordeom, Fio do João da Lia no pandeiro. Só falta o violão, que acaba de chegar, para completar o conjunto que, nas décadas de  1950 e 1960 animava os bailes de Pompéu e cidades vizinhas ou distantes.

Dona Maria da Conceição Porto, esposa de Celso Nunes, responsável pelos eventos sociais do Cristalino, reúne os filhos, Dico (de batismo, Armando) e Edmundo, para convocar as moças, como nos tempos áureos do Clube.

Os irmãos, Eli e Mimbém, os ceguinhos tocadores e cantadores, chamados há pouco, afinam seu cavaquinho e violão.

Em espaço reservado aos seresteiros, Dona Inhaninha e o marido, relembrando os velhos tempos, ensaiam sua canção predileta, Acorda, Minha Beleza, para que o filho se reconheça novamente em casa.  Zé Tampinha, Polego, Irilda Porto, Luzia do Inácio Diogo, Neusa do Tavo, sobrinha do homenageado, escolhem o repertório, privilegiando a canção preferida de cada um:  Casinha Pequenina, Recordação, Último Beijo, Saudade de Pompéu, Cabecinha no Ombro, em homenagem ao conterrâneo centenário que acaba de chegar.

Velhos tocadores e cantadores se reúnem ao grupo do Jerônimo Vieira, para tocar com o violonista João Galdino, derradeiro membro chamado para tocar no céu.

E essa voz que canta solo ao violão?

“A cerejeira não é rosa mais…”.

É o nosso amigo Wilson Quirino, Cafeteira para os companheiros, que ensaia canção do seu repertório, relembrando os tempos de solteiro em Pompéu.

E esse piano que vem de longe? Escutem! O Weber da Irilda Porto!!! Sim. É ele… ensaiando a Ave Maria de Gounod no velho harmônio da Matriz Nossa Senhora da Conceição.

Escutem agora: uma sanfona sertaneja rasga o fole lá atrás e uma voz canta sentida:

“Ô Ciganinha, ô, vamos viver viajando…”

É o Lúcio do Alípio, com a dupla Perigosa e Perigosinha, as duas cachorrinhas  ensinadas que, uivando com as patas nos joelhos do sanfoneiro, o acompanham em noites de lua cheia.

Padre João Porto, criador da primeira banda de Pompéu, convoca os músicos e dá ordens para começar os ensaios. Que se repita na abertura das comemorações do centenário de nascimento do sobrinho-neto, o sucesso histórico da primeira apresentação em setembro de 1905, na celebração das bodas da jovem Inês Umbelina Vieira e Francisco Procópio Lobato na Fazenda do Diamante.

Com música, do erudito ao sertanejo, Dengo terá uma festa digna de cem anos de existência de quem na Terra dedicou à música e a fazer os mais deliciosos doces para adoçar a boca de quantos dele se aproximaram.  Quem não conhece o famoso Doce Dengoso, feito artesanalmente em grandes tachas de cobre no fogão de lenha no terreiro da cozinha? Quem nunca bateu no portão de sua casa singela e acolhedora na antiga Praça do Mercado com uma vasilha nas mãos, comprar doce para a sobremesa de domingo? Para adocicar a vida do filho estudante em Belo Horizonte, ou presentear um amigo com o melhor doce da região?

Eu ia com uma vasilhinha comprar doce. Puxava prosa e pedia:

−  “Toca pra mim!”

E o músico, docemente, pegava o violão, concentrava e tocava com a alma inteira, como se estivesse no palco, apresentando para uma multidão. Eu aplaudia com entusiasmo. E ia me deixando ficar. Assim conheci o músico e sua história. E conquistei amizade.

Filho do famoso seresteiro João Gonçalves de Araújo e de Ana Maria Porto, Inhaninha, vocalista da primeira banda de música de Pompéu, Geraldo Gonçalves de Araújo, o nosso Dengo, foi um virtuoso do violão. A música vibrava em suas veias. Tirava de ouvido qualquer ritmo. Mas não ficou nisso. Autodidata, dedicou-se com afinco aos estudos da música e do violão clássico. Treinava  todos os dias, religiosamente, como se ensaiasse para um grande concerto.

Quando o iê-iê-iê invadiu os salões e a guitarra elétrica tomou o lugar do violão, Dengo se retirou dos palcos. Já não havia mais espaço para a música romântica, para os famosos bailes com dança de salão, para as valsas e boleros, para o choro, queixava sentido. E o conjunto aos poucos se desfez, só voltando a se reunir eventualmente para tocar em festa de amigos, ou pelo puro prazer de tocar juntos.

Nos últimos anos, Dengo recolheu-se em casa. Já não aceitava convite para se apresentar em público, embora continuasse a se dedicar à música em seu “atelier”, no quarto da sala, com estudo e treinamento diários.

Passou a vida em Pompéu o músico doceiro. Longe das gravadoras, nunca se preocupou em gravar. E, quando convidado, não aceitou. A notícia de seu talento chegou a outros músicos que o conheceram e admiravam. Joaci Ornelas foi estar com ele e quis trazê-lo a Belo Horizonte para uma gravação em estúdio. Mais tarde, propôs levar equipamento e gravá-lo em casa. Eu insisti. Queria tanto que o seu violão tocasse para o mundo! E continuasse a tocar pelos séculos além. Dengo, no entanto, lúcida e educadamente rejeitou a proposta, alegando medo de ser traído pela memória que, por vezes, súbito lhe dera de faltar. Agora, com sua partida, cala a voz de mais um violão, cala a voz de mais um músico mineiro, que poderia ter deixado uma grande contribuição para a arte e a cultura brasileira. E o País fica falto da boa música, que vai desaparecendo em detrimento de uma “música” de consumo, imposta nos meios de comunicação de massa.

Nós, que o conhecemos e ouvimos, lamentamos a sua ausência e o silêncio do seu violão até que o músico se re-integre a seu grupo lá em cima e tome lugar na grande orquestra, que há de se apresentar em breve. Nesse dia, em qualquer canto do mundo, se ouvirão vozes e violões, cavaquinhos e bandolins, banjo, bombos e bombardines, flautas, pistons e clarinetas, acordeons e pandeiros, piano, tuba, trombone e trombeta, ao lado da viola caipira na mais perfeita sintonia. São os músicos de Pompéu, acompanhados de Santa Cecília, a padroeira dos músicos, e de um coro de anjos, que festejam o aniversário do nosso amigo violonista, juntamente com o Natal do Menino Jesus, lembrando os mistérios da vida, o milagre do amor.

Comentários
  • FERNANDO ALAN MARTINS MACHADO 3714 dias atrás

    Parabéns à Professora Edméia pelo brilhante texto.

    Tive o prazer de ouvir o Sr Dengo tocar, em uma seresta que aconteceu em Pompéu, na década de 90, foi no Minas ao Luar.

    O evento foi muito bonito e pessoas da idade avançada, como meu pai, Betim, aproveitaram para matar a saudade dos tempos de seresta. Esse dia ficou marcado na minha memória e me orgulho de ter visto o Sr Dengo dedilhar seu violão, creio que talvez tenha sido sua última apresentação em público.

  • Flávio Junior Porto 3714 dias atrás

    Dona Edmeia, sou grato a Deus por ter tido a senhora como minha educadora na infância. Este texto tem que ser lido nas escolas, para as crianças voltarem a ter gosto pela leitura. Linda e justa homenagem ao nosso Dengo. Uma justa homenagem a todos os familiares e amigos.

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