Deserção

Publicado por Antonio Ângelo 11 de agosto de 2025
Deserção ilustração
Deserção ilustração
Ilustração Benício Cunha

Um dia – era tarde da noite –

Sentei-me à mesa com meu anjo

num boteco de fim de rua

que ia dar num descampado.

 

Pendia do teto uma lâmpada mortiça

que mais salientava as sombras

do que iluminava o ambiente.

Pedi cerveja e algum petisco

(Nelson Gonçalves rodava na vitrola).

 

O sonolento balconista

de vez em quando nos olhava

como a dizer: deem o fora,

chega de conversa,

não percebem meu cansaço?

 

Tentava explicar ao anjo

desacertos e atos insanos cometidos;

ele me olhava com preocupação,

os olhos claros de longos cílios.

 

Via-se contra a parede

a sombra difusa de suas asas.

– Não é possível, não é possível – repetia

ao lhe confessar tantas desditas.

 

Preocupava-se ao constatar

que em sua missão falhara

por não ter agido a tempo

de me livrar das confusões

em que tantas vezes me metera.

 

Falhara, reconhecia,

em seu dever de suster-me

na terra revolta e minada

em que se tornara minha vida.

 

Ao fim, paguei a conta

juntando míseros trocados;

levantamo-nos e fomos à rua

de onde partiu rumo ao campo.

 

Andava cabisbaixo,

braços pendidos ao lado do corpo.

Só  então pude ver que havia sangue

Conspurcando a brancura de suas asas.

banner

Fundação Metro

Clique Aqui!