Cascalho, de Herberto Sales

Publicado por Maria de Lourdes Utsch Moreira 26 de maio de 2010

Um bom livro pode ficar esquecido em algum canto, mas um dia um leitor especial há de descobri-lo. Não sei se o romance Cascalho está nesta condição. Se está, que o descubra logo um leitor de bom gosto.

Baseado no livro, o diretor e roteirista Tuna Espinheira, rodou o filme homônimo, Cascalho, na própria Chapada Diamantina. A realização do longa, que tem no elenco atores como Harildo Déda, Othon Bastos e Irving São Paulo (já falecido), só foi possível graças ao edital de roteiro de Fernando Coni Campos, vencido em 2002. Na ocasião, o filme recebeu cerca de R$ 1,1 milhão, verba insuficiente para finalizar o projeto. A luta para que a produção chegasse às telas levaria ainda seis anos e consumiria ainda, cerca de R$ 400 mil.

Voltando ao livro, o autor Herberto Sales, foi um baiano que passou a infância, a adolescência e a juventude em Andaraí, na Chapada Diamantina. Houve um período em que estudou em Salvador. De volta dos estudos, regressa a Andaraí, cidade onde nasceu, viveu alguns anos e exerceu várias atividades. Conheceu de perto e a fundo a engrenagem, o funcionamento dos garimpos de diamante, sem perder de vista as implicações sociais, econômicas, morais, geográficas, dando relevo e importância aos garimpeiros, aliás, os protagonistas do romance.

Publicou Cascalho em 1944. Com certeza, nessa altura, já estivesse bem relacionado nos meios literários do Rio. Marcos Rebelo era um dos amigos de então. Por sua influência entrou para a ABL. Não se entusiasmou com a crítica, até aceitou a sugestão de Sérgio Milliet de reescrever o romance. Na segunda edição foi bem recebido pelos críticos em evidência.

Cascalho é uma narrativa heróica da vida dos garimpeiros da região baiana das lavras de diamantes, precisamente, nas cidades de Andaraí, Piranhas e Paraguaçu.

A visão é neorrealista. Não é uma cópia, mas o reflexo do real. Andaraí seria uma lembrança na memória do autor que junto à imaginação transfigura e recria uma nova Andaraí. Seus moradores são personagens consistentes e verossímeis: os coronéis, donos das lavras, o médico velho e doente, o vigário, o turco de mil negócios, o farmacêutico, o juiz de direito, o delegado, a polícia, os jagunços, as parteiras, as benzedeiras, os comerciantes, a arraia miúda, cheia de carência, forasteiros, as mulheres damas com fortes ligações com os garimpeiros.

As relações entre as pessoas alimentam a trama. O fulcro do relacionamento é a situação conflituosa entre os garimpeiros (explorados) e os patrões (exploradores).

É um livro duro, onde não há lugar para a complacência. Não há espaço para o amor. Os apelidos que uns dão para os outros revelam muitos aspectos das condições de vida e da psicologia dos garimpeiros: Neco Rompedor, Manuezim Conguia, Agenor Cabeça Cega, João Boi, Filó Finança, Benedito Laqueado, Zeferino Boca de Virgem, Juvenal Bosta Boa… A ignorância, a bravura, a força física, a sensualidade, acrescente-se a imbecilidade e a obsessão de resistir em viver procurando e buscando, na miséria, a riqueza.

Dá para organizar um pequeno léxico da linguagem regional designativo dos garimpos, do seu instrumental e técnicas de funcionamento, como também, os nomes dos lugares, das pessoas, das plantas, dos animais, dos objetos domésticos etc. Além dos termos chulos, expressões e aforismos populares.

“Envoltos na escuridão reinante, os garimpeiros como que se prostravam diante daquelas duas forças que se defrontavam na noite: as águas rouquejantes do rio Paraguaçu e o patrão majestático”.

Há dois elementos telúricos no romance: o rio Paraguaçu e a serra. Ambos ligados à faina do povo, principalmente, na dos garimpeiros. Eles compõem a paisagem, além disso, para os homens escravizados, subservientes aos senhores das lavras inspiram sentimentos opostos. O bem é o rio correndo, mansinho, onde lavam os corpos sujos, distraem-se com a beleza das águas, o prazer. Do mal, quando o rio se enfurece e com violência devastadora vai causando destruição e morte. O romance começa e termina com as cheias arrasadoras do rio Paraguaçu invadindo as minas e matando os companheiros.

A serra é um bem, mas, desventrando-a, com ambição mineradora desordenada dos homens, é que é o mal. Bem é vê-la intacta, ao longe, numa perspectiva sonhadora, infinita, de liberdade.

Cascalho foi publicado em 1944, portanto, na segunda onda do modernismo, especificamente, dentro do regionalismo nordestino. Muitos manuais de literatura omitem o nome de Herberto Sales, citando seus companheiros de geração: Mário Palmério, Antônio Callado, Josué Montello, Bernardo Elis… H.S. mudou o rumo da sua produção literária. Além dos Marimbus, Dados Biográficos do Finado Marcelino, O Fruto do Vosso Ventre, Histórias Ordinárias, Transcontos, O Lobisomem, O Sobradinho dos Pardais e A Vaquinha Sabida (literatura infantil). Em Cascalho o autor coloca, entre os famosos tipos do romance regional, o garimpeiro baiano que pode ser o protótipo dos outros garimpeiros que perambulam por este Brasil afora, carregando sobre si mesmos as marcas da busca interminável de um tesouro escondido.

Quando de seu falecimento, em 1999, teve o corpo velado no Salão dos Poetas Românticos, no Petit Trianon, sede do Silogeu brasileiro. Foi sepultado no Cemitério São João Batista, no Mausoléu da Academia. Cascalho está disponível para venda pela Editora Círculo do Livro.

Veja o trailer do filme:

Comentários
  • Antonio carlos/andarai 4948 dias atrás

    Bom, sou até suspeito em falar pois sou filho dessa cidade maravilhosa que se chama Andaraí, esse filme me fez ver um pouco da cultura dos meus antepassados, pois sou neto do único fogueteiro da época (Damião Fogueteiro)

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