Maria da Cruz e o Motim dos Sertões – parte I

Publicado por Padre Joao Delco Mesquita Penna 12 de novembro de 2021

Maria da Cruz e o Motim dos Sertões – parte I  Matriz de Nossa Senhora da Conceição em Matias Cardoso, MG

Qual é a verdadeira história de Maria da Cruz? Dia dos Gerais

A cada ano a população da simpática Matias Cardoso, no Norte de Minas Gerais, se reúne para comemorar no dia 8 de Dezembro o “Dia dos Gerais”, data  em que também se celebra a Festa religiosa de Nossa Senhora da Conceição, padroeira da Igreja centenária que se ergue entre as montanhas e curvas do Velho Chico.

Às margens do Rio São Francisco, a cidade de Matias Cardoso possui uma das igrejas mais antigas do Estado, dedicada a Nossa Senhora da Conceição, que foi construída por volta do ano de 1675. Por isso foi estabelecido o evento “Dia dos Gerais”, criado pela Emenda Constitucional Estadual 21/2011, baseado em documentos oficiais da Colônia e em outros registros feitos por viajantes e estudiosos da época.

A celebração do Dia dos Gerais surge também com objetivo de fazer memória à data em que o território da capitania começou a ser povoado, numa iniciativa para marcar o reconhecimento do Norte de Minas como um dos primeiros núcleos de  povoamento mineiro, por grupos que vieram subindo o rio São Francisco a partir da região Nordeste, pernambucanos, baianos e também reinóis, ocupando seus espaços.

A região denominada Sertão do Rio São Francisco compreendia os arraiais de  Vila Risonha de Santo Antônio da Manga de São Romão, o povoado de Vila Brejo São Caetano, atual Manga, Brejo do Amparo ou do Salgado, atual Januária, Capela das Almas, que virou Barra do Guaicuí, atualmente distrito de Várzea da Palma, povoado de Formigas, atual Montes Claros e outros aglomerados menores, pertencentes à comarca do Rio das Velhas, com sede em Sabará e depois à Comarca de Serro Frio, atual Sêrro.

Assim, por toda a extensão do Vale do São Francisco encontramos rastros e ruinas de construções centenárias, algumas delas preservadas até nossos dias, verdadeiras relíquias a céu aberto, fazendo memória a um passado que nos leva ao século XVIII, quando tudo começou por aqui!

Maria da Cruz e o Motim dos Sertões – parte 2

Ruínas da Igreja de Pedras, Barra do Guaicuí, Várzea da Palma, MG

Neste sentido podemos nos encantar com os belíssimos e valiosos altares das igrejas da comunidade de Brejo São Caetano, hoje Manga, Igreja de Matias Cardoso, dedicada a nossa Senhora da Conceição, Igreja do Brejo do Amparo, hoje Januária, dedicada a nossa Senhora do Rosário, igreja também dedicada a Nossa Senhora da Conceição em Pedras de Maria da Cruz, Igreja Nossa Senhora de Nossa Senhora do Rosário em São Romão e as belíssimas Ruinas de uma Igreja de Pedras do Senhor Bom Jesus de Matozinhos em Barra do Guaicuí, que remonta ao século XVII, construída sob a orientação dos Padres Jesuítas, com mão de obra dos escravos. Acredita-se que a argamassa utilizada foi de óleo de baleia trazido do litoral nordestino via Rio São Francisco.

Estas ruinas estão localizadas no pontal do encontro das águas do Rio das Velhas, antigo Guaicuí, com o rio São Francisco. Existem documentos datados de 1755, que já noticiavam a existência do local e de capelas dedicadas ao Senhor Bom Jesus de Matozinhos, a Nossa Senhora do Bom Sucesso e Nossa Senhora do Rosário, pertencentes à freguesia de Nossa Senhora do Bom Sucesso e Almas do Arraial do Rio das Velhas.

O Evento também celebra a memória de personalidades que ajudaram a construir a nossa história, como o desbravador sertanista Matias Cardoso de Almeida e a nordestina, conhecida como a “Matriarca do Sertão Sanfranciscano”, Maria da Cruz, mulher guerreira destemida, que viveu à frente de seu tempo, a quem passaremos a fazer referência neste artigo.

Com o passar do tempo muitas conotações foram dadas à personagem Maria da Cruz Porto Carreiro, mas qual seria verdadeiramente a identidade desta mulher, que hoje cede seu nome ao município de Pedras de Maria da Cruz? Quem foi ela? Inocente, culpada, cruel, perversa, ou seria Maria da Cruz uma mulher bondosa e destemida que procurava superar todas as dificuldades do seu tempo pela coragem, ação humanitária, liderança política? Bem ali nas  margens do rio São Francisco no século XVIII, distante dos centros civilizados da época.

No ano de 1736 essa mulher teve o seu nome ligado ao movimento que ficou conhecido como Motim dos Sertões ou Conjuração do São Francisco. Trata-se de uma série de levantes ocorridos na região norte da então capitania de Minas Gerais, às margens do Grande Rio dos Currais, atual São Francisco, palco de grandes revoltas nativistas contra o jugo da Coroa Portuguesa.

No sertão brasileiro do século XVIII, as leis eram escritas com pistolas, bacamartes e espingardas. Mandavam os grandes proprietários de terra que impunham sua própria justiça, através de bandos armados e ignoravam o fato de serem vassalos do rei de Portugal.

Nesse ambiente viril, no rude Norte de Minas, ergueu-se a figura memorável de  Maria da Cruz. Dona de um patrimônio invejável, ela foi a única mulher entre os líderes de uma rebelião que atacava o governo e resistia à cobrança de impostos que consideravam abusivos já que nenhum retorno proporcionavam.

Nascida às margens do Rio São Francisco, batizada na freguesia de Nossa Senhora do Rosário da Vila de Penedo, atual cidade de Penedo, na então comarca de Alagoas, pertencente ao bispado de Pernambuco, ainda muito cedo veio viver no sertão do Rio de São Francisco na capitania das Minas Gerais.

Mulher de tradição religiosa Católica, casou-se na igreja com o paulistano Salvador Cardoso de Oliveira, sobrinho do capitão de campo Mathias Cardoso de Almeida, que era  também de família abastada da Capitania de São Paulo.

Em uma partilha de terra para os sertanistas, Salvador demarcou o quinhão que lhe havia cabido às margens do São Francisco no Sítio das Pedras, onde o casal ergueu a Capela dedicada a Nossa Senhora da Conceição, com altares devotados a Santo Cristo e a Santa Rita que permanecem firmes e intactos até nossos dias, onde se localiza hoje pacífica e simpática cidade de Pedras de Maria da Cruz.

Para as historiadoras Ângela Vianna Botelho e Carla Anastasia, como a maior parte das mulheres do seu tempo, Maria da Cruz nunca aprendeu a ler ou escrever, segundo declarou em seu testamento inédito, que publicaram na íntegra. A descoberta dessas historiadoras não confere com a versão de Diogo de Vasconcellos, de que ela era culta e havia sido educada por irmãs carmelitas. “Não achamos nenhum documento que sustente essa descrição, que ele pode ter colhido de algum relato oral”, diz a historiadora Ângela.

Mas, fica a pergunta: quem realmente foi Maria da Cruz Porto Carreiro, que sobreviveu ao tempo como personagem ambígua? Por um lado, alguns memorialistas a descrevem como uma pessoa cruel, que recebeu a alcunha de Maria da Cruz da Perversidade. Maltratava seus escravos e, para não remunerar serviçais, chegava a mandar matá-los e jogá-los no rio?

Por outro lado, a imagem que se tornou mais conhecida foi aquela traçada por Diogo de Vasconcellos, na obra História Média das Minas Gerais, publicada em 1918, em que a mesma Maria da Cruz aparece como mulher generosa, determinada e dotada de grande visão. “Era ela quem sustentava os enfermos e os inválidos … e quem educava os pequenos, pagando os mestres de leitura, de música e de ofícios”, descreve o autor. Ao ficar viúva ainda muito jovem com três filhos, assumiu os negócios agropastoris, fornecendo alimentos para a região da mineração. Conquistou a estima dos moradores e tornou-se líder contra os desmandos da Coroa Portuguesa despertando aversão dos prepostos da metrópole.

Com base em exaustiva pesquisa em arquivos no Brasil e em Portugal, onde encontraram documentos inéditos, como o codicilo, que é um pré-testamento, de Maria da Cruz, as autoras conseguiram responder a algumas das inúmeras interrogações que cercam a verdadeira identidade da Maria da Cruz. Todos concordam que esta mulher fazia parte do grupo dos ricos e poderosos daquela época, que foi se fortalecendo no exercício do poder em um Norte Sem Lei, carente de instituições, a ponto de assumir a liderança na defesa do povo.

Também chegaram mais perto de descobrir qual o papel exercido por ela na sanguinolenta revolta desencadeada naquele ano, uma das mais importantes ocorridas em Minas durante o período colonial e talvez a mais violenta de todas.

(continua na Parte II)

 

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