O relato de Osíris – parte II

Publicado por Verlim de Oliveira Campos 23 de dezembro de 2016

o relato de osiris II

O Coureiro então me disse que eu haveria de voltar ali em 2020 para verificar as transformações pelas quais aquela região passaria e que ele estaria me esperando. Mostrou-me que tinha uma cruz na testa, igual à da cobra urutu, que era sua identidade, marca pela qual eu deveria reconhecê-lo e certificar a realidade de sua existência pelos tempos intermináveis. Fôlego eu tinha, coragem também, mas faltava força para garantir o corpo sobre as pernas. A razão não aceitava nada do que estava ouvindo como verdades e ainda hoje creio que se contar posso ser considerado como desequilibrado ou até mentiroso. Apenas escrevo para que alguém me veja lavando as mãos no Poço do Engenho e saiba que tudo que espero neste mundo vai acontecer por graça e bênção e não apenas por atendimento às rotinas que precisam ser presenciadas. Tal como o nome do poço, não exige presença de engenho algum nas imediações, mais adequado seria chamá-lo de poço triangular porque seria referência ao formato que exibia…

Depois de passar pelos Dois Córregos que davam nome à região comecei a perceber o clarear impulsionando a barra do dia. Dali até os Gonçalves a estrada era de terra solta, bastante poeirenta. Próximo a um mata-burros de divisa de propriedades andei um pouco no desvio para carros de tração animal porque na pista dedicada aos automóveis e caminhões havia mais poeira fina. Meu sapato acabou de vez, apesar dos pedregulhos dispensei-o ali mesmo. Já dia claro meus olhos perceberam a aproximação da rodovia que ligava Pompéu a Abaeté. Queria chegar ao Porto e à casa e comércio de meu irmão mais velho, Alcino, descansar um pouco e descobrir como vencer os 18 quilômetros restantes, do Porto à cidade de Pompéu.

Meu irmão não demostrou nenhuma satisfação de me receber e nem me ofereceu qualquer apoio. Era dia santo e o movimento comercial era fraco e não exigiu muito dele. Por esta razão tive de repetir minha história e percebi que ele estava tendo uma opinião distorcida dos motivos que me colocavam ali. Eu queria apenas voltar pra casa na cidade, entrar em contato com meus outros irmãos e com minha mãe. Imaginava como seria repetir este relato ao meu pai. Fazer o que? Era para lá que eu tinha que ir.

Previ o que se confirmou, meu pai concordou com restrições e condicionou seu apoio à conversa que teria com o Alcides. Infelizmente esta conversa demorou a acontecer, meu irmão demorou a aparecer lá em casa. A lembrança das conversas com os andarilhos não era aceita como verdade. Daí para acharem que haviam mais mentiras sobre os conflitos que provocaram meu retorno foi uma conclusão imediata. E quem dentre eles, com culturas limitadas, aceitaria estas histórias fantásticas do Osíris e do Coureiro. E olhem que não contei, por motivos que apenas a mim diziam respeito, o encontro presenciado pela Maria do Camocica.

Durante os meses que se seguiram sonhei com estes momentos e com os diálogos mantidos com aqueles andarilhos. Nos sonhos envolvia outras pessoas do Bandeira, principalmente os tios. Em dezembro o tio Joaquim veio a Pompéu e visitou-me. Queria saber se eu soube, através deles, alguma coisa sobre a morte de um seu cunhado que apareceu morto na subida da Lajinha. Lembrei-o de que tinha ido levar um litro d’água para colocar no pé da cruz pedindo chuva. Omiti a informação que Coureiro me deu muito antes destes fatos, numa manhã que ele esteve bebendo leite da vaca Rainha, no curral do Bandeira. O Coureiro tinha me indicado uma pedra na passagem de vau no Jatai, onde eu deveria encontrar um canivete da marca Corneta. E dizia que este canivete era assassino.

Estes homens estão para sempre guardados na minha memória e permanecerão ali até que passe o tempo marcado para que eu volte lá. Apenas temo que não encontre ninguém que conheça ou que saiba algo sobre estas referências. Agora, nestes tempos recentes, quando me neguei a prestar informações sobre eles, ambos reapareceram em meus sonhos. O Osíris no meio do roçado que ficava à esquerda da estrada que ia pra Lajinha e o Coureiro no cantinho da venda do Zé Edwiges. O Coureiro agora insiste em mostrar pro Aquiles como é fundo o poço do Engenho. Agora ele tem vocabulário bem melhorado e me garante que vou conhecer muitas surpresas.

Quando sonho, penso que ainda estou com 12 anos ou pouco mais do que isso e dentro de mim estão vivas as esperanças de namorar com a Maria do Venerando, neta do José Maria do Mato Grande. Quem sabe se ainda cato pedrinhas quadradas no meio dos cascalhos daqueles campos onde pequizeiros produzem quase na mesma quantidade dos coqueiros macaúbas. Ela gostava tanto das pedrinhas e eu dos beijos que ela prometia e nunca dava. Apenas uma vez permitiu que roçasse meus lábios no seu rosto e repetiu a promessa de participação. Sonho que surpresas vão acontecendo por um tempo que não termina nunca. A felicidade vai rasgar todos os tempos da vida. É o sentido do amor se realizando por inteiro no lugar onde primeiro procurei ser feliz oferecendo mais do que tinha sem esperar que me pedissem. Tio Pedro chegou trazendo pequis graúdos da cor de laranja. No lençol sobre a mesa da sala de jantar misturamos pequis e pedrinhas de Santa Ana, da cor de café ralo adoçado com rapadura do engenho do São Lourenço. Saudades das balinhas de ponto do melado, puxa-puxa agarrando nos dentes.

Se você não sabe o que é balinha de ponto eu ensino. Trata-se da produção de rapadura e açúcar mascavo. O pessoal que trabalha nesta rudimentar indústria chama o açúcar de moreno ou de preto e frequentemente enfatiza quando esta tonalidade está mais ou menos densa. A melhor qualidade é quando a cor castanho clara permite a percepção da maior ou menor quantidade líquida que dá a densidade do produto. Na tacha de cobre a garapa é fervida até se tornar melado e chegar à condição de ser retirado dando origem ao açúcar ou à rapadura. A produção de rapadura exige que o melado seja colocado em formas para que a cristalização ocorra mantendo a apresentação previamente estabelecida inclusive para fins de comercialização. Para saber se o melado já está em condições de ser retirado da tacha e transformado no produto final pretendido verifica-se a condição da densidade atingida. Despeja uma pequena quantidade do melado numa vasilha com água. Se a condição já tiver sido atingida o melado transforma-se numa bolinha. Esta bolinha oferecerá em análise de aglutinação quando está pronto. Se a bolinha for uma bala puxa-puxa está excelente. Na São Lourenço o velho Nervito recomendava a atenção máxima para que isto pudesse identificar a qualidade das rapaduras ali produzidas inclusive em safras sucessivas. Os clientes confirmavam suas preferências em razão deste cuidado.

Disse quase tudo que precisava dizer e algo mais que nem fazia parte da proposta inicial apenas para não ficar em débito com a proposta de atendimento a quem queria saber mais sobre os andarilhos que nada tinham de meliantes, mas simples desocupados por negligências sociais, culturais e de educação. Muito ainda sei e me lembro que deixo de reportar e evito alterar o cuidado e o respeito que gozo em função de alguns conceitos que nem sempre são representativos da realidade que tivemos que viver. A vida é uma quadra que lavramos cumprindo tarefa de eito, proporcionada para ser particularmente da época de ocorrência e que podemos impedir prorrogações por tempos infindos, mesmo esperando reviver alguns destes momentos que possam estar vinculados ao destino. Irei contar mais quando se fizer necessário.

Comentários
  • Betty 2641 dias atrás

    Incrível como o autor viaja no tempo, milênios para trás e décadas para a frent, uma verdadeira obra de Realismo Mágico. Abaeté virou Macondo, achamos o sucessor de Gabriel Garcia Marquez, do peruano Manuel Scorza, dos argentinos Julio Cortázar e Jorge Luis Borges, do venezuelano Arturo Uslar Pietri, e no Brasil de Murilo Rubião, José J. Veiga, Luís Bustamante e Dias Gomes. Espero que dessa fonte continue jorrando água boa. Tim-tim!

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