O cigarro da Luiza

Publicado por Sebastião Verly 1 de fevereiro de 2010

Desde que parei de fumar tenho compaixão dos fumantes, mas abomino a fumaça do cigarro. Com o dinheiro que economizei ao parar de fumar, em 20 anos, patrocinei duas viagens de meu filho à Europa, lá permanecendo oito meses. Minha irmã economizou o suficiente para comprar uma casa, com o abandono do cigarro. Mas Luiza, a empregada de meu sobrinho e afilhado, ainda que de família estruturada, fuma desbragadamente desde mocinha.

Ao voltar para Pompéu, minha cidade natal, eu adorava conversar com essa menina fumante. Esclareço: quando meu filho nasceu, eu estava muito bem de saúde e finanças, fiz uma frustrada experiência de voltar para a minha cidade. Foi meu primeiro contato com a consciência da globalização. Na cidade de pouco mais de 20 mil habitantes, às 20 horas, tudo pára, porque a população tem de ver as nauseabundas novelas da Globo. Igualzinho aos grandes centros das metrópoles. Eu não tenho estômago suficiente.

Comprei uma loja e instituí um costume de tomar umas três cervejinhas para bebemorar todo dia o sucesso, hábito que aprendi com meu irmão mais velho, que encerrava o expediente de sua loja no Barreiro, em Belo Horizonte, com meia dúzia de cervejinhas geladas. Na ponta do balcão, chegava a uma meia dúzia de copos e nós ali em volta contando “causos”.

A Luiza sempre se aproximava com um olho na vizinha loja do meu afilhado, o outro na rodinha que se formava, o cigarrinho sempre na mão ou na boca, e um copo cativo reservado diariamente.

Numa tarde daquelas, as companheiras e companheiros de copo sofriam com os personagens de novelas e eu desviei o assunto para a necessária solidariedade humana na vida real. Comentávamos que ali na cidade sempre tivemos um mendigo jovem que ninguém conhecia a procedência. Um dos primeiros foi Mané Leitão, depois o Waldemar Leitão que diziam que era irmão dele, ambos seriam filhos de uma viúva que, expulsa da fazenda, após a morte do marido, veio morrer na prostituição e nas cachaçadas na cidade, deixando os meninos ao deusdará.  Lembramos do Dejo, que cresceu fazendo pequenos furtos e que era responsabilizado por tudo que sumia, mesmo quando fosse o filho de um grã fino quem tivesse surrupiado o objeto do furto. Um dia levaram o Dejo ao rio São Francisco e o despacharam para o outro mundo. Ninguém tugiu nem mugiu. O silêncio nesses casos, é uma lei antiga daquelas bandas.

Pensei que fora eu quem tivesse mudado o rumo do papo, não entendia, apenas, porque a conversa ainda prosseguia por todo aquele tempo, já que o hábito era falar pelos cotovelos. Os assuntos surgiam e desapareciam rapidamente. Imagino que saí para atender um freguês ou freguesa que queria um retrós de linha, agulha ou botões, sei lá, porque era o que se vendia perto das seis da tarde.

Voltei ao grupo, fiquei ouvindo e relembrando mais alguns meninos mendigos da cidade que eram alvo do nojo de muita gente. As pessoas tampavam o nariz e viravam a cara, quando passava perto deles, porque eles fediam, uma vez que onde eles dormiam, ali mesmo urinavam-se, no próprio “leito”, nas calçadas ou passeios das ruas do centro. Só depois de ouvir um pouco mais da conversa, alguém me mostrou, apontando com o dedo, um garoto, no passeio do outro lado da rua, a uns cinqüenta metros acima da minha loja. O menino estava cheio de perebas e pustemas pelas pernas e pelo rosto, em todas as partes descobertas dos trapos sujos que o vestiam.

Contaram-me que o pai, um grande profissional, creio que bombeiro ou eletricista, sei lá, chegou à cidade com a esposa e o filhinho. Muito trabalhador trazia o filho como um príncipe. Ao senhorio pagava o aluguel adiantado para manter sua imagem de uma pessoa correta. Com poucos meses na cidade a mulher adoeceu e veio a falecer imediatamente. O viúvo, apesar de jovem saudável, simpático e até mesmo bem apanhado, como dizem por lá, não mostrava vontade de casar-se de novo. Sentia saudade de sua finada esposa e, talvez para compensar, cuidava ainda melhor do menino.

Ninguém sabe como, lá um triste dia, o pai também aparece morto. Morte natural. Não tinha parentes e ninguém sabia sua procedência. Tudo que ele tinha foi desaparecendo. O menino, já grandinho, na ocasião estava lá com seus 13 ou 14 anos, passou a dormir na calçada e viver da caridade popular.

Olhei novamente para o garoto e, mesmo àquela distância, dava para perceber as feridas em seu corpo, a imundice dos seus trapos e o rosto esquelético e imundo, dormindo no “leito” do cimento sujo umedecido pelo seu mijo.

Todos nós estávamos com os olhos vermelhos. Pedimos à Luiza que apagasse o cigarro. Essa fumaça do tabaco realmente irrita os olhos de qualquer cristão.  Pelo menos essa foi nossa conclusão.

Comentários
  • Leda Carvalho – Belo Horizonte 5191 dias atrás

    É…. Verly, a fumaça do cigarro é de responsabilidade da Luiza, é de seu livre arbítrio, mas o menino na rua não. Mexe comigo, pois é de nossa responsabilidade. Ele não tem culpa de ter perdido o pai e a mãe…e que solidariedade é esta que não podemos adotar uma criança? Que vaidade é esta que não se pode dar um banho e roupa? Uma escola? Igual a este menino tem milhares de crianças que se o homem tivesse o senso da “proporcionalidade” isto não aconteceria. O homem é por demais maximocrático, quer tudo somente pra ele por isto poucos tem muito e muitos tem quase nada. Ainda acredito na utopia de uma boa educação no Brasil.
    Um abraço e parabéns pela sensibilidade da fumaça que intoxica o fumante e os vizinhos, e fumaça que sombreia o AMOR das pessoas.

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