O Raso da Catarina

Publicado por Sebastião Verly 27 de abril de 2012

No ano de 1974, eu tive a oportunidade de trabalhar na construção da
Barragem de Moxotó, no Rio São Francisco, que era parte do complexo
hidrelétrico de Paulo Afonso, na divisa dos Estados da Bahia, Pernambuco e
Alagoas, no Nordeste brasileiro. No município de Paulo Afonso, que faz divisa
com a famosa região do Raso da Catarina, poucas pessoas conheciam o tema
e menos ainda o local. Parte da região havia pouco tempo, foi reconhecida
como Reserva Biológica e mais tarde se tornou a Estação Ecológica do Raso
da Catarina.

Nosso Superintendente, Derenzi, engenheiro de profissão, era um filósofo de
vivência e dava o maior valor aos aspectos ecológicos e aos conhecimentos
geográficos mais significativos. Principalmente se fosse uma novidade.
Numa de suas saídas até a Cidade, além dos muros do acampamento da
Cia. Hidrelétrica do São Francisco, a CHESF, Derenzi conheceu Sebastião
Eleutério, dono de um pequeno Hotel, que contou que tinha uns amigos que
viviam isolados no Raso da Catarina.

Daquele dia em diante, Derenzi, encarregou-me de pesquisar o assunto.
Consegui informações orais, a maioria imaginações e lendas, algumas bem
criativas. A maioria narrava histórias das heróicas escaramuças que Lampião
o maior cangaceiro do Brasil, e seus homens ou “cabras”, lá pela década
de 1920, aplicava aos “macacos”, como eram chamados os soldados da
policia. As “volantes”, destacamentos de combate móveis das polícias dos
estados circunvizinhos, chegavam nas bordas da temível caatinga e recuavam
assustadas.

Fazia gosto ouvir, por exemplo, o motorista Antonio Carneiro, o Carneirinho,
contar dos tempos em que pertencera ao bando de Virgulino Ferreira da Silva,
o Lampião. Dava para perceber que era tudo fruto de sua mente desejosa de
haver sido um pouco daquilo.

Do pouco que soube, contei ao meu chefe que lá não tinha água e que havia
uma erva parasita que poderia fornecer até dois litros de água fria para o
corajoso que se atrevesse a avançar caatinga adentro. Todo o folclore ao redor
de Lampião era agregado ao assunto. Diziam até que Lampião era considerado
um bruxo ao conseguir água tão pura e fria naquela região inóspita.

Derenzi não sossegou até o dia em que o tal Sebastião Eleutério prometeu
nos levar até a casa de seu amigo na entrada da fascinante região, depois
de vencer aproximadamente 100 quilômetros de estrada de terra da pior
qualidade, solenemente desconhecidas das autoridades locais, estaduais e
federais.

Nosso Superintendente parecia mais uma criança ao preparar a sonhada
viagem. Tudo acertado, convocou seu mecânico de confiança, chefe da oficina,
o sardento Mario Soro para motorista e companheiro. Nossos informantes
falaram da existência de porcos do mato, e em especial de um porquinho
miúdo e valente, o “tiririca”, capaz de por para correr muitos bons caçadores
que por ali se atreveram a penetrar. Isso excitou ainda mais a vontade do
pacato engenheiro. Como já gostava de armas, virou, de súbito, um ousado
caçador. Queria comer carne dos javalis e, de quebra, traria um “tiririca” bem
gordinho para a “Cumadre”, como era chamada sua empregada, assar em
casa.

A viagem parecia brincadeira de crianças. Primeiro, as recomendações, os
cuidados. Depois, as estratégias e táticas para ficar na espreita de porcos que
faziam a poeira subir no meio do mato, tal a quantidade que compunha as
manadas. A conversa não parava dentro da confortável Chevrolet Veraneio
recém reformada até na pintura, que seguia sendo arranhada pelos ofensivos
ramos da vegetação do sertão baiano.

As excentricidades começaram quando chegamos à casa dos amigos do
Sebastião e ele convocou o dono da casa e um de seus filhos para nos
guiarem na grande aventura. A primeira surpresa foi o “café” da manhã:
era uma bebida feita de arroz torrado, mais parecia, pela cor, um chocolate
sem gosto. Em troca, oferecemos as restantes latinhas de cerveja e, o mais
importante, a água que se juntou pelo derretimento do gelo dentro da caixa de
isopor, que virou um grande presente. Para nós só interessava iniciar o dia que
prometia ser o mais assombroso de nossa estada na região.

Só havia um cavalo que foi claramente destinado a mim. Agradeci e fui
firme ao dizer que puxaria o animal para alguma eventualidade, mas não
o montaria. E cumpri minha palavra. A recomendação maior era para que
nos mantivéssemos juntos. A vegetação é uma coisa impressionante: tudo
totalmente idêntico. Por isso, dizem, as “volantes’ não se arriscavam a entrar
naquela caatinga imensa e hostil.

Quando o sol saiu já havíamos andado dois ou três quilômetros. De vez em

quando nossos guias nos mostravam as pegadas dos porcos, os pés maiores
eram certamente dos caititus que meu chefe teimava em chamar de javalis. O
momento quase solene, que reuniu o grupo todo, foi quando encontraram a tal
erva parasita que nos permitiu encher uma vasilha, de propósito incluída nos
apetrechos, justamente para este fim. Todo mundo quis beber um pouco para
ter certeza que a água estava fria. Para eliminar os resíduos ou “polme” das
raízes, a água foi coada, …. na fralda da camisa do morador local. É verdade!

Depois de muita caminhada, nunca parávamos para descanso, mesmo
porque o passo era bem suave e tranqüilo, avistamos um casebre no meio
da caatinga. Os moradores eram conhecidos dos nossos acompanhantes
ainda que de poucos contatos. Pai e filho saíram da humilde moradia e nos
receberam com seus cumprimentos habituais e mostraram-se alegres com
nossa presença. Nada tínhamos para oferecer e eu, que havia colocado uma
camisa de manga comprida sobre uma camiseta, usei a desculpa do calor para
deixar “de presente” uma boa camisa social. Fizeram questão de almoçarmos
com eles, pois, na véspera haviam matado um porco do mato e seria a
oportunidade de saborearmos a carne tão imaginada.

Deste almoço vale detalhar um pouco mais. Serviram, em um copo de metal
ferroso, um liquido avermelhado que parecia um suco daquele limão capeta.
Meu chefe fez a maior boca para o suco até saber de que se tratava de água
do barreirinho, uma espécie de barragem que acumula as águas das chuvas,
parcimoniosamente consumida durante o resto do ano, o vermelho era do
barro. E mais, os canecos eram de fabricação caseira, um só para cada dupla
dos presentes. Para mim, sobrou tomar a água junto com o filho do primeiro
anfitrião e também guia na viagem, Derenzi foi “honrado” para beber junto
com o dono do casebre, a quem ele sempre referia posteriormente como
o “velho desdentado” numa brincadeira natural com o estado bucal do dono do

ranchinho. Para completar a comida, que era apenas alguns pedaços de carne
magra de porco do mato, serviram-nos um prato com cuscuz e leite de cabra.
E mais uma vez, o prato fundo era para todos, que se revezavam no uso das
colheres.

Vale destacar a atuação da Estação Ecológica do Raso da Catarina, que
está localizada entre os rios São Francisco e Vaza-Barris, na região mais
seca do estado da Bahia, com pluviosidade de no máximo 600 mm por ano.
Administrada pelo Instituto Brasileiro de Meio Ambiente, IBAMA, está a 60 km
de Paulo Afonso, em lugar de difícil acesso. Ocupa uma área de 105.282,00
hectares em uma zona de clima semi-árido. A vegetação é composta por
caatinga arbustiva. É uma região cheia de histórias: foi palco da Rebelião
de Canudos e, devido à dificuldade de acesso, era o esconderijo ideal dos
cangaceiros.

O objetivo desta estação é proteger o ecossistema e permitir o
desenvolvimento de pesquisas científicas de sua fauna e flora. A fauna é
diversa, é o lar da arara-azul-de-lear, considerada a espécie mais ameaçada
de extinção do mundo, a avoante e mamíferos como o veado-mateiro e a
onça suçuarana. A vegetação é a caatinga arbustiva, com abundância dos
espinhentos mandacarus e xiquexiques e diversos tipos de bromélias.

É administrada pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade
(ICMBio). O acesso é restrito a finalidades educacionais e científicas,
dependendo de autorização prévia. O nome Catarina é uma homenagem a
uma antiga moradora e líder local. O nome Raso deriva do relevo em forma de
tabuleiro, que é recortado por ravina e cânions. A periferia no platô, sobretudo
nas porções sul e oeste, sofreu intensa erosão, facilitada pela natureza dos
sedimentos arenosos.

Nunca mais esquecemos aquele dia fabuloso. Sempre que o assunto fosse
pertinente, lá estávamos, eu e Derenzi, os dois a fazer inveja aos nossos
ouvintes. Para mim era e ainda é o máximo contar essa saborosa e divertida
aventura. E esnobo ainda perante os jovens estudantes de ecologia quando
relato esse caso e, sempre, apimento mais um pouco para causar mais

interesse. Porém, para vocês que me conhecem, garanto que tudo é verdade!

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