“Vê se se enxerga!”

Publicado por Saulo Soares 4 de maio de 2017
Vê se enxerga

Vê se enxerga


Dito assim, de supetão, pode parecer agressivo. Pode. Logo imaginamos a mão levantada, a testa franzida e alguns azedos perdigotos a cruzar o céu da cena. Mas – e quase sempre há um “mas” – nem sempre é assim… Pode ser um belo e sábio conselho.

De fato, tantos místicos bateram de forma contumaz nesta surrada tecla filosófica: “Conhece-te a ti mesmo!”. Um “vê se se enxerga” dito de forma mais eufônica, palatável, com um órgão de monastério a soar um belo acorde e um gorducho frade a tombar o seu franciscano pescoço para o lado. Padre Antonio Vieira, no “Sermão da Sexagésima”, ensina-nos magistralmente como “se enxergar”. Diz ele que para se ver são necessárias três condições: luz, visão e espelho. Se faltar uma delas não se dará a visão de si próprio. Tão óbvio quanto “invisível”. Sim, Nelson Rodrigues, você deve se recordar, dizia da “invisibilidade de óbvio”, razão pela qual as faltas cometidas nas barbas do juiz não eram vistas. Mesma razão pela qual alguns políticos não viram nada, de nada sabem, “esse dinheiro não é meu”… , “santificam-se”, em oposição à Luz e ao Conhecimento, pela cegueira e a ignorância.

Natural que Padre Vieira faça uma analogia entre a luz, a visão e o espelho com figuras próprias da religião. Para ele a luz é a Graça de Deus; os olhos, o conhecimento, a razão; e o espelho é a Doutrina, a Palavra. Graça, razão e Palavra; luz, olhos e espelho.

Pois bem. Sendo o espelho a Palavra e; a Palavra, o Verbo e; o Verbo, Jesus; podemos dizer que o Espelho é… Jesus. Ou seja, se desejamos enxergar-nos com clareza meridiana a nossa verdadeira imagem – “imagem e semelhança de Deus” -, devemos mirar a face, o amor, o jeito de pensar, olhar e de agir de Jesus. O Espelho do homem é o “Homem” Jesus. “Ecce Homo!” – “Eis o Homem!” – o “Verdadeiro Homem e o Verdadeiro Deus”.

Mas, e se mudarmos o “espelho”? E, se no lugar de Cristo colocarmos outro? Um “outro” que sou “eu mesmo”? Ou a imagem que fiz de mim mesmo? Foi o que aconteceu com Jacobina, personagem misterioso do excelente conto “O Espelho”, de Machado de Assis. Dele – Jacobina – é a afirmação de que cada um de nós tem duas almas: uma que vê de fora para dentro e outra que olha de dentro para fora.

Jacobina era Alferes. Acostumado aos rapapés e salamaleques da patente. Era “senhor Alferes, pra cá e pra lá”. Rola a trama e Jacobina vê-se sozinho numa fazenda, sem uma viva alma a lhe adular. Solitário, a única imagem humana que via, era seu reflexo no espelho. Os dias passam e ele apenas consegue enxergar-se no espelho tão somente quando… veste a farda de Alferes. Sem a farda, nada vê. Não se vê. Triste Jacobina. Reduzido a uma farda. Tristes tantos de nós Jacobinas…

É como diz o Salmo 80(81): “Mostrai-nos serena a vossa face e seremos salvos!” Ou ainda: “Que queres de eu te faça? O cego respondeu: Senhor, que eu veja!” Lc, 18,41.

Comentários
  • Saulo Soares 2504 dias atrás

    Olá, Irene! Obrigado pela leitura! O conto pertence à obra Papéis Avulsos. Grande abraço!

  • Irene 2508 dias atrás

    Muito instigante o artigo, esse conto “O Espelho” está em qual obra de Machado de Assis?

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