O cangaço e os cães

Publicado por Eulália Jordá Poblet 23 de abril de 2009

O cangaço
Caiu-me nas mãos um livro divino, “Cangaceiros”, de Élise Jasmin.

Acariciando suas páginas lisas e brilhantes, vi surgirem fotos que decifram um pouco do que pode ter sido a vida de pessoas e animais que o vento levou em meio à aspereza da caatinga.

De uma das fotos, próxima a árvores mirradas e sofridas, Maria Bonita olha para a câmara do fotógrafo Benjamin Abrahão. Sua figura de mulher, sem dúvida a mais emblemática do cangaço, é de beleza excepcional para a época, qualidade que deve ter encantado Lampião.

Famosa por sua coragem e determinação, lá está ela, trajada com um vestido citadino ao invés das tradicionais vestimentas do cangaço, cabelo alisado com banha cheirosa onde dois passadores brancos são o maior adorno – tão humana em sua vontade de se parecer aos habitantes da cidade. Fitando a câmara, seu olhar é de doçura.

Atribuo essa suavidade em seus olhos ao fato de estar ladeada por dois cães cuja animalidade paradoxalmente humaniza a atmosfera de rifles, madeiras mortas estendidas no chão e galhos retorcidos. Farejo carinho no ar que envolve esses personagens.

Um dos cachorros, de nome Ligeiro, é seu preferido. Com a mão direita a mulher toca sem peso a cabeça marrom clara, que com ar de beatitude canina encima duas patas brancas e um focinho escuro, demonstrando visível prazer em encostar-se nas pernas de sua dona, amiga e espécie de mãe – naqueles cafundós, filhos humanos não dariam conta de acompanhar o grupo.

A mão esquerda repousa lânguida sobre o dorso negro de outro cão, Guarani, que no momento do disparo da máquina, se vira para Lampião. O movimento em direção a esse rei das cartucheiras, punhais e fuzis é tão independente e real que sua cabeça fica registrada na foto como algo impreciso, ligeiramente fora de foco. O animal dá a impressão de um moto-contínuo reproduzindo exaustivamente a vida daquele instante na guinada eternizada.

Em outras duas fotos seqüenciais, vejo o bando de Corisco, armado até os dentes em evidente pose. Apenas a cadela não posa. Sua naturalidade, para quem está em primeiro plano, contrasta com o da fileira quase militar das pessoas ao fundo.

Na primeira foto, ela olha para a câmara com seu corpo branco manchado de negro como negra é a máscara que possui ao redor dos olhos. Na segunda, olha para o bando como se a presença do fotógrafo, tão ilustre naquela região desolada e espinhenta, não tivesse tanta importância quanto a dos “seus”.

Em mais uma fotografia, Corisco apresenta-se em posição clássica de sentido ao lado da mesma cadela. Esse homem cuja única linguagem parece ser a da violência, tem sua inscrição na história amenizada pelo amor dessa cachorra por seu relampejante ser-humano-corisco. Ela o tem como o chefe do bando, e ele, curiosamente ao ser o local tão árido, a chama de Jardineira.

Jardineira surge assim como a antítese da morte em meio ao mato seco, representando a beleza e poesia que os cães, com seu companheirismo, independente de quem somos, tão bem nos sabem outorgar.

Comentários
  • Hegos – cordelista 1404 dias atrás

    Estrou escrevendo um cordel denominado OS CÃOGACEIROS, com o propósito de discutir a participação dos cães no cangaço. Como o bando se apropriava desses animais? Eram criados desde de novinhos ou adotados? Eram adestrados? Eram utilizados para guarda, caça…
    Acho que temos poucos escritos sobre o assunto. Alguém poderia colaborar nessa pesquisa?

  • Ivo Marcelo 2969 dias atrás

    Eu sei bem como funciona a paixão da autora quando fala do cangaço. Também sou um apaixonado por essas histórias. Me fascinam as histórias dessas raposas do sertão. E quem critica o fascínio de pesquisadores e amantes é porque nunca sentiram paixão por coisa alguma. A Drª escritora está de parabéns pelas suas definições.

  • RAIMUNDO 3934 dias atrás

    Os coronéis de antes, são hoje representados pelos bancos e instituições financeiras que lucram absurdamente com o empobrecimento das pessoas. O capital fomenta a bestialidade humana. Os políticos não fazem aquilo para que foram empossados. A “justiça” continua virando as costas… Ora, o martelo da “injustiça” só pesa para os pobres. O cangaço foi a expressão da discórdia de viver humilhado. Comenta-se hoje, a forma utilizada na época e, se hoje é necessário transgredir as “leis” para chamar a atenção da classe podre política; imaginem à séculos passados…

  • Eulàlia Jordá-Poblet 4001 dias atrás

    Caro Izaias,
    você tem razão, para toda ação há uma reação, assim também ocorreu no Cangaço. A vida dura, o clima hostil, cenário terrível apontando para o dramático desfecho. Os cães, em meio a isso tudo, uns inocentes, foram leais aos donos, até o fim.

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