O cristo cego

Publicado por Saulo Soares 19 de março de 2018

o cristo cego

Raramente se vê na grande mídia posições favoráveis à Igreja, ao cristianismo e à fé. Quando muito, aludem à fé, de uma forma reducionista, como um tipo de terapia. Parece-me que a mensagem é: “Sejamos sensatos: crer é bobagem.”.

Estranhei, portanto quando li há algum tempo, numa revista de grande circulação, a seguinte afirmação do colunista Reinaldo Azevedo: “Precisamos de Cristo não porque os homens se esquecem de ter fé, mas porque, com frequência, eles abandonam a Razão e cedem ao horror.” Fé e Razão, tantas vezes contrapostas, aparecem, nesta significativa frase, como interdependentes e justapostas: excluindo-se Cristo, e a fé N’Ele e D’Ele decorrente, corre-se o risco de ceder ao horror. Fé e Razão ou, Fides et Ratio, é o título de um documento da Igreja onde se afirma serem elas as duas “asas” necessárias ao pleno “voo” do conhecimento.

A matéria completa trata dos horrores acontecidos no Sudão, mais precisamente em Darfur, onde prevalecem, a despeito dos organismos internacionais e entidades de defesa dos direitos humanos, a guerra, o genocídio, a matança selvagem, a fome imposta e os estupros. O repórter Diogo Schelp leva-nos à seguinte reflexão: “O mesmo mundo que se apieda de um filhote de urso-polar abandonado pela mãe no zoológico de Berlim fecha os olhos para as centenas de milhares de crianças subnutridas dos 130 campos de refugiados de Darfur.” Não há Lei em Darfur, nem misericórdia, nem esperança ou glória.

Samuel Fuller, autor e diretor do filme “Agonia e Glória”, The Big Red One, participante da Segunda Grande Guerra, afirma que “A verdadeira glória da guerra é sobreviver a ela”. O filme possui cenas memoráveis. Sem dúvida uma delas é a inicial: num cenário devastado, aparentemente só, um sargento americano, baioneta e fuzil em punho é, primeiramente, atacado por um cavalo “ensandecido”, os animais também têm seu comportamento alterado diante de tanta violência, e posteriormente assassina um oficial alemão, apesar de o inimigo pedir-lhe misericórdia e afirmar ter a guerra acabado e ela – a guerra – tinha, de fato, terminado.

Tudo isso se dá sob a égide de um crucifixo onde o Cristo têm os olhos furados, deles saem insetos, numa clara referência à “cegueira” de Deus diante de tamanhos absurdos. Ora, como disse o repórter, não somos nós precisamente aqueles que fechamos os olhos, fazendo-nos de cegos, diante de tantas injustiças e horrores? Parece-me que se torna mais cômodo e alivia o peso de nossas consciências culpar a Deus por sua “não interveniência” em nossa liberdade, do que assumirmos, de fato, nossas mazelas e omissões. Ou, como em algumas seitas: põe-se logo a culpa no “encosto”, no “demônio” e lava-se as mãos feito Pilatos. Justamente, nós, que prezamos tanto a liberdade e a temos como valor inegociável e sobre o qual não se transige!

Reinaldo Azevedo, no mesmo artigo do qual se retirou a afirmação da capa, diz: “Em Auschwitz, no Gulag ou em Darfur, vê-se, sem dúvida, a dimensão trágica da liberdade: a escolha do Mal. E isso quer dizer, sim, a renúncia a Deus. Mas também se assiste a dramática renúncia ao homem. Esperavam talvez que se dissesse aqui que o Mal Absoluto decorre da deposição da Cruz em favor de alguma outra crença ou convicção. A piedade cristã certamente se ausentou de todos esses palcos da barbárie. Mas, com ela, entrou em falência a Razão, humana e salvadora.”.

Celebrar é tornar célebre. É se lembrar. E recordar é trazer novamente ao coração, re-cordis. A Igreja recorda, celebra a cada ano os passos de Cristo. Nesses próximos dias celebraremos a “Semana Santa”. Dentre os momentos mais importantes e dramáticos encontra-se o julgamento de Cristo. Nas leituras desse dia, há um instante em que todos participam, repetindo o que foi dito há 2.000 anos pela multidão: “Crucifica-o! Crucifica-o!”. Cristo foi julgado e condenado por um injusto tribunal, por um covarde e iníquo juiz.

A humanidade parece não ter mudado muito de lá para cá. Muitos de nós continuamos a esquivar-nos de nossas responsabilidades, passando ao largo do próximo; julgamos e condenamos injustamente Deus, exigindo, publicamente, a crucifixão de quem nos apresenta a solidariedade e o amor como um caminho superior e uma via de santidade.

Não obstante tudo isso, ainda devemos optar pela esperança. Sim, pois como diz a Carta aos Romanos 8,24: “É na esperança que somos salvos”.

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