A Noite do Meu Bem

Publicado por Edmeia Faria 23 de dezembro de 2013

Na Construção da memória, muitas lembranças vão sendo armazenadas, uma vez que os fatos mais marcantes de nossas vidas se dão num determinado tempo e lugar, concomitante com outros fatos ocorridos em diferentes locais e circunstâncias diversas. Ao acessar a memória, muitas lembranças vêm à tona. Quando me propus a escrever estas memórias do rádio, velhas recordações me tomaram de assalto.

Um rádio antigo… Desses primeiros Philips; o segundo a entrar no Sertão dos Buritis, hoje município de Pompéu, no Vale do Alto São Francisco, interior de Minas Gerais, onde nasci e passei a infância e a maior parte da minha vida. Chega na garupa da bicicleta do meu pai, também uma Philips, a primeira a desbravar o sertão.

Que foi feito de um e outro? A bicicleta foi companheira, enquanto papai pôde andar. Até os 84 anos de idade. É nela que vem todos os dias trazer a sua bênção, o risinho farto, e verificar as fechaduras, as dobradiças, consertar pequenos estragos, para garantir a segurança e bem-estar da “minha filhinha.” Saber das novidades. Acompanhar de perto a vida e os tropeços. E tomar café com um queijinho assado na ponta do garfo.

Depois do AVC, a perna direita meio perra, a bicicleta sem utilidade, senão a de guardiã da história, foi parar no quartinho dos fundos. E um dia, sem mais nem menos, vendida por mamãe, a preço de banana. Ao primeiro que apareceu na porta. E o rádio? Que foi feito do antigo rádio? Bateu saudade. Saudade da família reunida para escutar música e o Repórter Esso.

Que notícia do Brasil e do mundo pode interessar a uma menina de 4, 5 anos de idade? O que me prendia àqueles momentos era o colo do meu pai. E os bichos projetados na parede pela sombra de suas mãos. Tem um coelhinho que ficou morando na minha lembrança. Este mexia as compridas orelhas e corria parede afora durante os comerciais, ou descia, indo se esconder na sua toca no momento exato em que os homens dentro daquela caixa mágica anunciavam o Programa com uma musiquinha: tchan tchan tchan tchan tchan… Hora de silêncio para escutar o “testemunho ocular da história”. Eu desligava nesse instante. E me recolhia com o coelhinho, para só acordar no meu quarto, com papai rezando a oração do anjo da guarda à cabeceira da minha cama: um catre encourado.

Na cidade, o rádio não precisa esperar papai chegar do serviço. E a família já não se reúne a seus pés. A meninada tomando corpo e destino, escola de manhã, trabalho de tarde. De noite, o encontro com a turma na esquina para brincar e jogar conversa fora.

Minha irmã, ficando moça, é que ficou viciada em rádio. Em rádio e fotonovela. Costurava com o rádio ligado e a revista Capricho aberta em cima da máquina, debaixo da tesoura. Eu tinha outros afazeres e outros interesses.

Na adolescência, fui passar uma temporada com minha tia Vina em Pitangui. Aí, me desabrochei. E descobri o rádio. Minha tia era jovem. Alegre e divertida.  Partilhava comigo o pó de arroz Angel Face by Ponds, o rouge Tentação e o batom vermelho da Marylin Monroe, a diva de Hollyood. E conversava de mulher para mulher: “Viu como o Jorge olha procê? Tá gamadinho!” E ria, ria e ria sua risada gostosa. “Viu o Luiz? Caidinho. Só você não vê.” Eu bem que via. Não sabia era com quem ficar. Se namorava um, perdia o olhar apaixonado do outro. Bom mesmo era flertar. Só flertar. Com um e outros. E sorrir. Brincar. Ademais tinha o Zé Lúcio, que a minha tia desconhecia. Foi o Zé Lúcio quem me iniciou na arte de namorar. Nesse tempo, havia mais diálogo e menos “intimidade.” Beijos eram proibidos. Mãos dadas, só no escurinho do cinema. A gente se encontrava no jardim da cidade, onde ficava o coreto, ponto de encontro de moças e rapazes. Jorge, Luiz, Zé Lúcio… Parada dura. Parada! Nas paradas de sucesso, Cely Campelo: Alô Cupido! pra longe de mim... Tomo um banho de lua/ fico branca como a neve…

Zé Lúcio falava de cinema, de literatura, de música, de cantores e compositores. E o alto-falante continuava a espalhar música entre os namorados, juntamente com a brisa fresca e o perfume do jasmim: Nos seus braços sem querer/ quase sempre vou parar… Eu sei que vou te Amar/por toda a minha vida/eu vou te amar… E vinha do alto-falante os pedidos de música e as declarações de amor: Canção do amor demais, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes, na voz de Elisete Cardoso, a pedido de… Eu não existo sem você, oferecido a…. E vinha por fim, iluminar todos os meus sonhos, acariciar meu ego, A Noite do meu Bem, de Dolores Duran que Alguém oferece a Alguém como prova de amor e afeição. Hoje eu quero a rosa mais linda que houver/ e a primeira estrela que vier/para enfeitar a noite do meu bem. Esta, sem que ninguém soubesse, era a nossa música. E ficaria para sempre cantando dentro de mim. Na matriz Nossa Senhora do Pilar, nas tardes de sábado, noivinhas subiam ao altar de véu e grinalda ao som da Ave Maria e da Noite do Meu Bem, para se entregar intactas nos braços do noivo amado “Até que a morte os separe.” Eu, como todas as moças desse tempo, sonhava o mesmo sonho: casar de véu e grinalda.

Na casa da minha tia Vina, o rádio divide espaço com uma jarra de flores vermelho-amarela sobre uma mesinha de canto na sala. E fica ligado o dia inteiro nos melhores programas musicais. Eu escuto os sucessos do momento, atenta a seu autor e compositor. E leio na Revista do Rádio tudo sobre o meu ídolo, para ter o que conversar.

Zé Lúcio, rapaz feito. Bonito. Sorriso claro. Alto e elegante. De terno cinza escuro, camisa branca. Sem gravata. Estudante. Sabia das coisas e da vida. E me falava com doçura de assuntos variados. No cinema, pegava minha mão e guardava por baixo da sua dentro do paletó, do lado esquerdo do peito. Eu podia sentir seu coração apressado, batendo forte por mim: “Te quero, te quero…” O meu, dentro da blusa, batia no mesmo ritmo e compasso, arfando os babados. Zé Lúcio o sentia só pelo olhar. Não ousava ir além. Nem eu tomava sua mão e guardava do lado esquerdo do peito, para que ele me sentisse. Guardava só o desejo e encantamento.

Finda a temporada em Pitangui. Na rodoviária, primos, amigos e fãs choram a despedida. Abraços. Na despedida é permitido abraçar. Nos braços do Zé Lúcio, pela primeira e última vez, a cabeça apoiada no peito quente e aconchegante, escuto as batidas fortes do seu coração: “Te amo, te amo…” De dentro da jardineira em movimento,  abano a mão num último adeus. Já com saudade. O lencinho branco empapado de lágrimas

.Retorno a Pompéu com a alma grávida de música e poesia. O rádio, agora, companheiro nas paradas de sucesso. Nas paradas da vida. E nas lembranças agridoces da adolescência, na descoberta do amor.

Comentários
  • kayo cristtyann lima peixoto 3686 dias atrás

    tem noticias de petalas ao vento?seu retrato? gostaria muito de ver as telas e fotos. abraços fortes , att. kayo cristtyann.

  • Maria Mendes Barbosa 3744 dias atrás

    Ah!Deu uma saudade grande daqueles tempos.Lendo o texto revivi
    parte do meu passado.Era um filme desfilando as imagens do meu vivido: outras pessoas e outros lugares,mas,o radinho sempre ligado,enquanto minha irma costurava,e,até dormia.A tardezinha,era a hora da novela :O Direito de Nascer:todos rodeavam o radio ,mesmo meu pai,ninguém podia falar,às vezes,chorar.E,Copa do Mundo?
    Que alvoroço!
    Um lindo texto!

  • Ramon Moreira 3745 dias atrás

    Hoje vivemos na cidade grande sempre pensando no dia em que vamos voltar para o interior e encontrar nosso paraíso perdido.
    Um escritor, Mário Canelas, escreveu recentemente um livro de crônicas sobre isso. Numa de suas passagens, em Inhapim, ele tenta expulsar uma vaca da estrada e os moradores se revoltam….aquela vaca era sagrdada lá, ele é que tinha que tirar o carro da estrada.
    Infelizmente, para os que moram lá, o interior não é mais este paraíso. É como se fosse uma pequena cidade grande.
    Mas nos toca fundo lembranças como essas, que são nossas,e de tudo aquilo que nos fez humanos seres de interior.

  • Antonio Ângelo 3745 dias atrás

    Delícia de texto! Preciosas lembranças… Principalmente para quem, como eu, teve infância e adolescência interiorana.

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