Cadê o rim que estava aqui?

Publicado por Antonio Carlos Santini 28 de abril de 2014

No século passado, li na primeira página de um jornal: uma estudante de 15 anos de idade “descobriu” que um de seus rins “desapareceu”… Ao que tudo indica, durante uma cirurgia realizada em 1988, em um hospital da capital paulista.

– Minha filha, cadê o rim que estava aí?

– O gato…

Ora, não foi o gato. Bem sei que a palavra gato tem outros sentidos. Permite conotações de agilidade, de ação sub-reptícia, tirando as castanhas do fogo. Conota, quem sabe, a quadrilha que rouba e furta. Conotará, pode ser, a ação das máfias profissionais…

– Fui roubado ontem. Pularam o muro lá de casa e levaram meu televisor de plasma.

– Eu também fui roubado. Abriram minha barriga e surrupiaram meu fígado…

– Você precisa ter mais cuidado! Uma hora dessas, vai-se o coração!

Em que página estamos? Na página de humor ou na página policial? Então, um profissional de nível superior, com juramento de Hipócrates e tudo mais, é capaz de praticar um assalto, bisturi em punho, invadindo criminosamente a saúde e a vida de uma criança? E ainda vamos reclamar das balas perdidas e do trânsito violento?

*   *   *

Confesso que estou preocupado. Pode ser que eu ainda precise de uma cirurgia. Ainda não escolhi qual delas. Talvez extrair três sisos inclusos. Talvez aquele carocinho que incomoda no conduto auditivo esquerdo. Talvez aquele começo de “papo” que vai tomando conta da cartilagem, junto à faringe. Talvez a hérnia inguinal, já promovida a pêssego e tendendo para abacate. Talvez os ligamentos do tornozelo direito que romperam durante o banho. Talvez…

E esse talvez é cada vez mais incerto, pois as notícias que sopram do hospital não são alvíssaras. Consta que meu corpo foi rebaixado à categoria de “depósito de órgãos”. Passo em frente a uma clínica: lá na janela, vejo o cirurgião que me avalia por cima dos óculos: dois pulmões, dois rins, duas córneas… hum… um fígado de abstêmio…

Por estranho que pareça, meu corpo se mudou em objeto de desejos médicos. Tenho medo de ter uma vertigem na rua e, quando acordar, estar pendurado no gancho do açougue, com o preço na tabuleta: coxa, lombo, acém, costelas…

*   *   *

– Mamãe, estou saindo!

– Vai com Deus, minha filha! E não fica olhando para estranhos, viu? Olha que estão procurando doadores de retina…

E lá vai, pela avenida, a pequena Lucimaria. Só tem um rim. E pela cara de preocupação de seu anjinho da guarda, ela que não se distraia… Ou fica sem o outro.

Cruz credo!

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