A moça da rua de baixo

Publicado por Antonio Ângelo 2 de janeiro de 2017

Década de 60,
um menino crédulo – atemorizado pelo inferno da culpa –
acompanha a procissão de Sexta-feira Santa
em sua interiorana cidade.

Longa procissão, um rio de chamas,
o toque fúnebre da Banda da Polícia,
a expressão reflexiva dos fieis,
maioria proveniente da zona rural,
rostos marcados por intempéries,
ossos salientes nas faces queimadas.
Desvalidos a orar pelo Senhor da cruz descendido.

A criança segue em meio à turba
imaginando céus insossos,
mais real lhe parecendo o inferno
pelos pecadilhos cometidos
na sua rotineira imprevidência.

Mas há de seguir o bom caminho
através de uma vida de sacrifícios
dedicada ao Deus misericordioso,
ora levado em seu esquife sob o pálio
por solenes senhores da Confraria
ornados por mantos medievais.

Agora o féretro passa pela rua da casa
onde existe à frente um barranco.
O menino em meio ao povaréu ergue os olhos
e vê acima a linda moça da rua de baixo.

Estática qual uma madona em ascensão,
a clara tez contra o firmamento,
os cabelos negros em leve esvoaçar,
os grandes olhos escuros – é possível vê-los –
carregados, percebe, de melancolia.

Há de a ter visto algumas vezes – o menino –
a moça que engravidara sem se casar
e de quem falam nas esquinas, nos botecos,
assunto da maledicência ferina dos inquisidores
que apostam ser este o pai, ou aqueloutro.

Mas o garoto mal entrado na adolescência
na visão prenuncia sonhos românticos,
viagens a países de fantasias
onde espaços e perspectivas inusitadas
descobrem sacrários proibidos,
revelados em seus mais delicados recessos.

Qual um rio de lavas vulcânicas segue o cortejo;
sombras e luz dançam no barranco
onde a Madalena recolhida em seus mistérios
lá está, à margem dos fogos da fé,
isolada concebendo em pecado,
mais linda que a lua que esparge sua claridade
sobre a longa procissão dos penitentes.

Comentários
  • Gilberto Nable 2638 dias atrás

    Meu amigo e colega de escola: Tenho certeza que todos vivemos coisas muito semelhantes. Eu em Aiuruoca…mas a diferença não existe.
    Lembro Nietzsche: Temos a arte para que a verdade não nos destrua.
    Belo texto.
    Um grande abraço,
    Gilberto.

  • Normando 2641 dias atrás

    Que adolescente nunca fantasiou na missa e na procissão, que era a única hora que as mulheres mais resguardadas e recatadas se desproviam de seus fundamentos e se expunham fora dos muros dos quintais, retirando o khimar, o hijab, o niqab, a al-amyra, a shayla, o chador e até a burka?

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