Tinha eu que ser doutor…

Publicado por Antonio Carlos Santini 26 de setembro de 2014

cantor

A frase tem dono: é do elegante Paulinho da Viola. Está em seu samba “14 anos”, que nos faz pensar nas escolhas profissionais.

“Tinha eu 14 anos de idade

Quando meu pai me chamou:

Perguntou-me se eu queria

Estudar filosofia,

Medicina ou engenharia.

Tinha eu que ser doutor…”

Entretanto, estas opções paternas não agradaram muito ao jovem Paulo. Ele já olhava em outra direção.

“Mas a minha aspiração

Era ter um violão

Para me tornar sambista.

Ele então me aconselhou:

‘Sambista não tem valor

Nesta terra de doutor’.

E, seu doutor,

O meu pai tinha razão…”

Em seu precioso livro “É preciso saber envelhecer”, Editora Ultimato, Viçosa, 2014, Paul Tournier observa que a maior parte dos profissionais não seguiu a sua vocação. Há muitas pressões sobre a pessoa que acabam sufocando sua inclinação natural. Ou mesmo a sua missão, para a qual ela foi enviada a este planeta.

Sem dúvida, a escravidão do dinheiro em um sistema capitalista é um dos principais fatores deste desvio. Se o filho pensa em abraçar uma carreira artística, quase sempre ouvirá uma frase equivalente àquela que nossos avós repetiam: “Isso não dá camisa pra ninguém!”

Devo citar Tournier: “A margem de liberdade é muito estreita para quem exerce uma carreira escolhida por vocação; o que dizer então daqueles que não a escolheram e que são a maioria? Tal situação pode provir de causas externas; tiveram a má sorte de nascer numa família de poucos recursos financeiros e nunca conseguiram deixar a condição de indigentes, apesar de suas aptidões. É possível que um entre estes tenha tido um pai autoritário, que contrariou sua vocação por preconceito ou para assegurar-lhe um sucessor na empresa familiar. Outro pode ter tido uma mãe passional, que o impulsionou a uma carreira que, a seu ver, tinha mais prestígio”.

Nossa filha Regina Ester cursou Relações Públicas na faculdade. Após três semestres, ela veio me dizer: “Pai, vou sair da faculdade…” Perguntei o motivo. Ela respondeu: “Nesta profissão, eu vou ter de mentir todo o tempo em favor do patrão…” Cheio de íntima alegria, respondi: “Faz muito bem! Pode sair!”

Com esforço e sacrifício, ela se mudou para Viçosa e conseguiu entrar na Universidade Federal, onde cursou Economia Doméstica. A seguir, conseguiu uma bolsa para o mestrado. Regina Ester visava a área ambiental, mas o “orientador” (sic) não levou em conta sua opção e a desviou para a área familiar. Ela concluiu seu mestrado sobre o espaço do idoso na família. Hoje, nossa filha faz um valioso trabalho na área ambiental, ficando visível que sua vocação pôde superar todos os entraves que a sociedade lhe impôs.

Dentro do tema de seu livro, Paul Tournier acena para o tempo após a aposentadoria como uma possibilidade de recuperar os anseios e os sonhos da juventude. Ainda que como trabalho voluntário e não remunerado, muitos redescobrem sua vocação original neste tempo extra que a sorte lhes permite como um bônus, uma prorrogação no jogo da vida.

Pessoalmente, ao repassar minha vida, percebo que muitos trabalhos não remunerados que prestei a outras pessoas me prepararam para futuros serviços remunerados, por exemplo, como tradutor.

Hoje, Paulinho da Viola não vende seu samba por dinheiro nenhum. Ele seguiu sua vocação. E nós todos aplaudimos. Afinal, a música foi um rio que passou em sua vida…

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